45 anos de carreira não é para qualquer um, aliás, Emir Ribeiro não é qualquer um, ele sobreviveu ao inóspito território nacional durante todo esse tempo, ainda trabalhou nas gigantes Marvel e DC, além de ter criado a personagem Velta, que é reconhecida tanto no Brasil quanto no exterior… então, sem delongas…
1 – É quase impossível falar com você sem citar a Velta. Nos conte quando surgiu o insight para criação de tal personagem…
Quando a criei, a ideia era de completa rebeldia contra o estabelecido na época. Ou seja, o que o mercado e a censura impunham e tinham como recorrente, eu fiz questão de ir de encontro e fazer exatamente o oposto. A maior parte das edições daquela época, a década de 1970, as personagens femininas eram sempre coadjuvantes, passivas, trapalhonas e de personalidade fraca. Sem falar que eram excessivamente recatadas e cheia de pudores. E ainda havia uma censura ferrenha, na qual, qualquer ousadia ligada a sensualidade era severamente reprimida. Tinha censores por toda a parte, ou pessoas que tinham medo de chamarem a atenção dos militares, e por isso tratavam de promover a censura antes que qualquer arte tida como “proibida” acabasse sendo levada a público e causasse alguma confusão. A Velta se opunha a tudo isso. Talvez o único item que se manteve, vinda da influência dos quadrinhos estrangeiros “da moda”, foi o fato dela ser uma loura.
2 – E você imaginava que ela seria tão duradoura no cenário nacional?
Na minha inocência na época da criação da personagem, sonhava não apenas com isso, mas com muito mais. Pensava que conseguiria ter uma grande editora, empregando muitos roteiristas e desenhistas brasileiros e fazendo florescer meu universo de personagens junto aos desses outros artistas. Pensava que as criações poderiam estar não apenas em revistas periódicas, mas em cadernos, lancheiras, brinquedos, novelas, séries televisivas e filmes. Mas, a prática mostrou que no Brasil, isso nunca passaria de um sonho.
3 – Como você lida com a questão sexual de sua personagem? Afinal, ela é bem sensual. Você sofre com muitas críticas?
Atualmente, as críticas são praticamente inexistentes. Há uns anos, havia um sujeito e sua turminha que viviam pela internet, diuturnamente debochando e desdenhando do meu trabalho, mas, após o dito cujo falecer, o restante do seu séquito sumiu. Porém, eu não levava em conta o que escreviam, pois estava claro que não eram leitores da Velta, mas simples baderneiros. Os textos dessas figuras se restringiam a xingamentos de cunho pessoal, muitas mentiras/invencionices e palavreado de baixo nível. Ademais, pelo modo como escreviam, bem se percebia que não leram uma única HQ da Velta, e “opinavam” com base em “achismos”, no “ouvi dizer” ou em antipatia gratuita. Portanto, tais “críticas” não tinham embasamento prático e nem técnico que me fizessem levá-las a sério e muito menos mudar meu estilo autoral de produção. Basta dizer que, numa delas, fui chamado de “Paraíba covarde”, e em outra, foi feita uma montagem onde minha imagem pessoal aparecia vestida com uma indumentária nazista. O objetivo, portanto, era denegrir ao máximo a mim e meu trabalho com quadrinhos.
Com respeito à questão da sensualidade, a resposta poderia ser dada por um leitor dos EUA, cujas palavras vou reproduzir, traduzidas: “Acho as aventuras de Velta bem amplas nos temas abordados, às vezes só de ação, às vezes sagas cósmicas, às vezes casos íntimos e dramáticos e paixões complicadas, ainda mais quando inclui nelas suas outras criações como Doroti, Nova e Homem de Preto.(…) Vejo que a sensualidade de Velta está muito além da que os nossos quadrinhos americanos cheios de repressão nos oferecem. Eu tento imaginar como seria se as [super-heroínas da Marvel ou da DC] fossem tão exibicionistas como Velta! O que me impressiona é o quanto você é corajoso por não ignorar a vida sexual da sua heroína, e trabalha isso nas histórias. Nenhum autor faria isso nos quadrinhos americanos tradicionais.”
Como o leitor estrangeiro muito bem compreendeu, a temática sexual – a qual nunca trato de forma explícita e nem na base da chanchada ou da pornografia escrachada – é apenas UM DOS ingredientes dos meus roteiros, e não O INGREDIENTE exclusivo. Faz parte de um todo, bem variado. Por isso, não entendo porque o tema sexual levantaria polêmica, se há tantos outros assuntos abordados nas HQs de Velta.
Aliás, muitos leitores – inclusive gente realmente entendida em quadrinhos – já me pediram para mostrar cenas de nudez ou de sexo sem máscaras ou censura alguma. Citando argumentação usada por um desses leitores: “Suas edições não são destinadas a adultos? Não está escrito bem claro nas capas das revistas “para adultos”? Então, não há porque esconder genitálias ou cenas mais picantes.”
A íntegra da carta do leitor norte-americano está neste endereço: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1490443664366285&set=a.111336728943659.17353.100002019988949&type=3&theater
E há também outra extensa carta, essa de um leitor da Itália, que publiquei na íntegra (e também traduzida) na edição “42 anos de Velta” de outubro de 2015.
4 – 45 anos no mercado. Você vivenciou muita coisa. Nesse tempo você passou pela época da ditadura militar. Você chegou ter algum trabalho censurado?
Por incrível que pareça, eram as pessoas que temiam os militares quem davam mais trabalho. Desde que comecei a publicar revistas independentemente, a partir de 1978, era obrigado a levar exemplares à Sede da Polícia Federal, que as expedia para Brasília, a fim de serem lidas por censores. Nunca nada chegou a ser “cortado”.
Só houve, no jornal “A União” (pertencente ao Governo do Estado da Paraíba), que publicava minhas tiras diárias e páginas dominicais desde 1975, dois pequenos incidentes: 1) o editor pediu que eu substituísse ou eliminasse alguns nomes de políticos do governo, que eram citados num dos trechos de uma HQ ; 2) A primeira dama do Estado reclamou ao editor de uma cena onde Velta, encurralada por um bandido, abaixava a calcinha para distraí-lo e ter chance de atingi-lo. Mesmo assim, a cena era inteiramente insinuada, não mostrava nada diretamente e nem de modo chocante, e somente um adulto entenderia o que estava acontecendo, ao ler.
Antes disso, em 1973 e 1974, havia uma equipe censora de professores para o jornal mural do colégio que lançou Velta. Só que, antes da publicação, eu era obrigado a submeter as páginas a esses censores, e fornecia uma versão comportada das HQs, que era sempre aprovada. Mas, a versão que era pregada no jornal era diferente, muito mais ousada. Como os professores nunca iam ao jornal conferir a publicação, a prática continuou por dois anos. Os alunos e alunas adoravam, e nenhum deles nunca me “entregou”.
5 – E como você enxerga o desenvolvimento do cenário nacional? Outro dia ouvi alguém dizer que estamos na época de ouro dos nacionais, mas só vejo o Maurício de Sousa como empresa. Enxergo várias pessoas com potencial, com o surgimento do financiamento coletivo várias obras puderam ser publicadas, assim como com o avanço das redes sociais, também vejo alguns consolidados no exterior, mas nada realmente efetivo em terras nacionais. Estou equivocado nessa colocação?
A época de ouro dos quadrinhos nacionais foram as décadas de 1960 e 1970, quando existiam editoras publicando muito material nacional impresso. Havia muito trabalho para os roteiristas e desenhistas, mesmo que o pagamento não fosse o justo. As tiragens eram monstruosas, comparadas com as de hoje. Eram mais de 100 mil exemplares por cada número.
Com o tempo, isso foi decaindo, visto que as grandes corporações estrangeiras acirraram sua dominação, até chegar a este estado atual.
Maurício de Sousa é a exceção à regra: o sujeito que deu muita sorte e conseguiu se estabelecer num meio inóspito ao autor nacional.
O restante continua naquele gueto, publicando na internet, ou conseguindo financiamentos de “vaquinhas virtuais” ou de programas de incentivo à cultura. Enfim, uma situação de mendicância e pobreza.
A diferença é que a mão de obra nacional se qualificou, mas não por conta de um mercado interno (pois este NÃO existe), mas sim porque tais desenhistas almejavam publicar em editoras do exterior, principalmente as estadunidenses. Não se pode, portanto, dizer, que artistas contratados por Marvels e DCs estejam fazendo quadrinhos nacionais, porque não estão. São meros ilustradores de personagens gringos, das revistas gringas, dos roteiros gringos e sem direito a dar nenhum pitaco no que é publicado.
6 – Você passou por várias editoras, dentre elas as gigantes Marvel e DC. Como foi esse período da sua vida? E aproveite para nos esclarecer se é verdade que você fazia os desenhos e o Deodato assinava.
Foi entre 1993 e 2006. Ocorreu que Deodato deu sorte em aparecer num título tradicional e de visibilidade da Editora DC. O mercado, então, se voltou para ele e muitas editoras queriam seus desenhos nos personagens. A solução encontrada pelo estúdio brasileiro que o agenciava foi tentar atender a todos os pedidos das editoras, e para isso, outros artistas ajudavam a criar o mito “Mike Deodato”. Possivelmente, fui o artista a fazer mais trabalhos assinados por Deodato, por ser da mesma “escola” que ele. Também participaram – em menor escala – artistas como Mozart Couto, Luciano Queiróz, Edilbenes e outros que não lembro no momento. O truque principal era deixar o rosto do personagem para Deodato desenhar, enquanto os desenhistas e arte-finalistas “fantasmas” faziam todo o restante da arte. Alguns desenhos que eu fiz totalmente e até assinei meu nome, um editor substituía minha assinatura pela de Deodato, para a revista ser mais vendável. Era um artifício chato, mas com isso, todos ganhamos muito dinheiro, na época.
7 – Existe algo que você fez nessa jornada que você se arrepende? E qual o seu maior orgulho nessa caminhada?
Falando a verdade, não tive orgulho algum do que fiz para as editoras dos EUA, pois era um trabalho que não me realizava profissionalmente. Além disso, o desgaste era enorme, tendo que lidar com editores irascíveis e extremamente chatos e arrogantes (e não estou falando apenas de prazos apertados). Só aceitei passar por isso pelo ótimo pagamento, e nada mais. Não me arrependo de haver feito, pois, aproveitei a fase para ter uma vida financeiramente melhor.
8 – Está trabalhando em algum projeto? Ou pretende lançar algumas coisas por esses anos que se aproximam?
Atualmente, me mantenho no trabalho que me realiza, ou seja, criar histórias e movimentar a vida dos personagens que criei ao longo de mais de 45 anos no ramo. Lamentavelmente, não há mais aquela efervescência das décadas de 1960 e 1970. Todas as publicações caíram em vendas e as tiragens ficam cada dia menores. Chegará o dia em que as edições impressas brasileiras serão inviáveis, pela redução dos leitores, pelos sempre altos preços gráficos e pelas tarifas pesadas dos correios (que são usados para venda das revistas, visto que as bancas também estão em extinção e há tempos não são mais locais ideais para se desaguar a produção).
9 – Jogo Rápido.
Personagens preferidos?
Infelizmente, nenhum deles é publicado mais: Raio Negro do saudoso Gedeone Malagola, as vampiras Naiara (da extinta Editora Taika) e Mirza (do saudoso Eugênio Colonnesse).
Filmes preferidos?
Curti muito “O segredo da Múmia” e “As sete vampiras”, ambos escritos pelo grande R. F. Lucchetti, com quem já tive o prazer de fazer alguma parcerias artísticas, inclusive a recente “45 anos de Velta – Tomo 1 – Homenagem à Naiara da Editora Taika” .
Melhor livro?
Citarei dois. “Inocência”, do Visconde de Taunay e “A pata da Gazela”, de José de Alencar. Inclusive, me baseei neste último para conferir uma característica ao detetive particular Gilberto Schwartz Gomes, o namorado e sócio da Velta.
Melhor herói nacional?
O Judoka, da extinta Editora EBAL. Acompanhava suas aventuras avidamente, sempre ansiando para ver o número seguinte. Lamentavelmente, extinguiu-se e nem o único filme que fizeram com ele é mais encontrado hoje em dia.
10 – O que o Emir Ribeiro com toda experiência que adquiriu ao longo dos anos diria para o Emir Ribeiro do passado?
“Pára de sonhar, moleque, que a realidade é bem mais dura do que sua cabeça pensa”. (risos)
11 – Para finalizar. Quem é Emir Ribeiro?
Nos dias de hoje, sou bem centrado, de “pés no chão” e guiado pela lógica. Procuro ser honesto, franco e ético, e respeito todas as pessoas, tal como meus pais me ensinaram (e ambos estão vivinhos). Gosto de criar histórias e personagens fictícios, sendo isso quase uma necessidade fisiológica, além de fonte de diversão e lazer. Gosto muito de fazer arte. É um vício. No mais, sou igual a qualquer outro.
12 – Deixe os contatos onde os leitores poderão adquirir suas histórias e falar com você.
Caixa Postal 5068 – cep: 58051-970 – João Pessoa, PB – Email: [email protected] Site: www.emirribeiro.com.br
Emir, o HQ’s com Café agradece o tempo concedido. Desejamos sucesso nessa sua caminhada, e se você quiser falar alguma coisa, essa é sua hora.
Eu é que fico grato por mais esta oportunidade de falar um pouco para o público sobre um tema que adoro. Um grande abraço a você e aos seus leitores.
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