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Café Arcaico | Sonhos (Akira Kurosawa)

“Uma vez eu tive um sonho…”

Dirigido pelo mestre Akira Kurosawa, Sonhos é um filme nipo-estadunidense, de drama e fantasia, lançado em 1990, e que segundo o próprio diretor, fora baseado em sonhos que ele teve ao longo de sua vida. A obra é dividida em oito contos, de forma episódica, sendo cinco sonhos e três pesadelos.

. Um Raio de Sol através da Chuva: Nesse primeiro sonho, um menino (provavelmente Kurosawa quando criança), desobedece sua mãe e vai para a floresta em um dia de chuva, aonde também o sol estava brilhando. E segundo uma lenda japonesa, nesse clima as raposas se casam, e não gostam de bisbilhoteiros. Escondido atrás de uma árvore, o garoto presencia o ritual de matrimônio kitsune (kitsune = raposa). Após ser descoberto, ele corre para a casa, mas lá sua mãe o aguarda, e diz que uma raposa indignada esteve ali e lhe entregou uma pequena espada, e que ele teria as opções de cometer suicídio ou ir até aonde as raposas viviam e pedir perdão. Sendo assim, a criança embarca em sua jornada, pela própria vida.

. O Jardim das Pessegueiras: Aqui um menino, um pouco mais crescido do que no primeiro sonho, mas ainda criança, segue uma menina desconhecida e misteriosa até o quintal de sua casa, aonde, anteriormente, havia um pomar de pessegueiras, e que recentemente tinha sido derrubado por sua família. Chegando lá, o garoto se defronta com estranhos indivíduos e seu interlocutor conta que eles representam as bonecas do Hinamatsuri (Festival de Bonecas popular na cultura japonesa, que acontece no dia 3 de Março). Esses seres alegam ser o espírito das árvores e estavam ali para celebrar o florescimento das pessegueiras, mas como estas tinham sido derrubadas, não haveria mais celebração. A princípio eles culpam o menino por tal malfeito, porém, o jovem começa a chorar, dizendo que também era um amante da natureza, e que sofrera muito com o desmatamento causado por sua família. Sendo assim, os espíritos se sensibilizam com o sofrimento do garoto e o deixam presenciar a dança de celebração.

. A Tempestade: Um grupo de alpinistas, liderados por um homem que certamente representa Kurosawa, já que ele fora um exímio escalador de montanhas, tenta chegar ao seu acampamento, mas devido à uma nevasca e fortes ventos, passam a não enxergar nada, se perdendo um do outro, e aos poucos a neve vai cobrindo a todos, e eles acabam desmaiando, sem forças para continuar. Então, uma estranha mulher aparece, provavelmente, Yuki-onna, que segundo a lenda japonesa, é um espírito que canta para seduzir os homens, fazendo-os se perder na neve e morrerem congelados. A mulher tenta convencer o convalescente alpinista de que a neve era confortável, que ele poderia ficar em paz, tentando atraí-lo à morte, ao passo que o homem vai tentando resistir aos seus encantos.

. O Túnel: Aqui temos a primeira sequência de pesadelos da obra. Um viajante, que antes fora um oficial do exército japonês, atravessa um túnel para pedestres e ao chegar do outro lado, presencia com espanto, um soldado vindo em sua direção. Este soldado tinha sido um de seus comandados durante a guerra e morrera em combate, mas parecia não acreditar em sua morte, assim o oficial tenta convencê-lo, inclusive dizendo que ele morrera em seus braços, assim, o espírito volta para a escuridão do túnel. Porém, o pior ainda viria, e de repente, todo o terceiro pelotão que fora comandado pelo oficial na guerra, marcha para fora do túnel. O desespero do homem vem à tona, tomado por um sentimento de culpa, ele chora e pede perdão aos seus subordinados, pois a aniquilação de seus soldados havia ocorrido por negligência sua. E esse peso era tão grande, que ele mesmo preferia à morte do que conviver com isso. Nesse seguimento, o oficial do exército não é uma representação de Kurosawa, visto que o diretor fora dispensado do exército, por razões de enfermidade, e não lutou na guerra. Acredita-se, que o protagonista deste sonho/pesadelo seja um alter ego do lendário cineasta Ishiro Honda, realizador de Godzilla, clássico de 1954, grande amigo de Kurosawa, e que trabalhou em Yume como consultor e assistente.

. Corvos: Um jovem estudante de artes visita um museu, e ao observar uma obra de Vincent Van Gogh, se vê transportado para dentro do quadro. Nesse cenário, ele busca conhecer o próprio pintor pós-impressionista em pessoa. Chegando ao local aonde o artista se encontrava, e que estava procurando a inspiração para começar a pintar, os dois começam a ter uma interessante e enigmática conversa. Esse com certeza é o mais belo de todos os seguimentos, não necessariamente o melhor, mas é lindamente colorido, brilhantemente filmado, e o mergulho do estudante nas obras do mestre holandês é de uma beleza extraordinária. E ainda conta com a ilustríssima participação do diretor Martin Scorsese no papel de Van Gogh.

. Monte Fuji em Chamas: Nesse que é o segundo pesadelo da obra, uma usina nuclear situada próxima ao Monte Fuji (a mais alta montanha do Japão, aonde existe um vulcão ativo mas de baixo risco) começa a derreter devida à explosão de seis reatores nucleares. Isso causa o caos e terror em sua população, que desesperadamente começa a se jogar no mar, não encontrando outra saída. Sobrando apenas no local, dois homens, uma mulher e duas crianças (filhos da mulher). Um desses homens começa a contar que ele seria um dos culpados pelo ocorrido, inclusive narrando sobre as fumaças coloridas causadas pela radiação e o que cada uma iria provocar de doenças nas pessoas que fossem afetadas. Dizia ele que seria melhor morrer logo, do que lentamente com qualquer doença e que esperar pela morte não era viver.

. O Demônio que chora: No terceiro e último dos pesadelos, um viajante chega à uma terra devastada e desértica, em um terreno montanhoso, nublado e sombrio. Nesse ambiente, ele se depara com um Oni, uma criatura da mitologia japonesa, equivalente a um demônio ou ogro. Esse demônio conta para o jovem que devido a holocaustos nucleares (provavelmente as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki), acarretou-se a perda de toda a natureza e os animais e causando a mutação em seres humanos (ele mesmo, um dia fora um homem). Ele conta também, que os recursos naturais se findaram com a tragédia nuclear, e agora existiam diversos seres iguais a ele, que não tinham nada para comer e nem água para beber. E para se alimentar, eles acabavam praticando o canibalismo, e o maior sempre comeria o menor. E que, em determinados momentos, o chifre que cada Oni tinha em sua cabeça, começava a doer de forma insuportável, causando em todos uma agonia e os levavam a darem gemidos agonizantes durante um bom tempo. E essa tristeza se arrastaria enquanto eles durassem. Tudo isso causado pela ganância do ser humano.

. O Vilarejo dos Moinhos: Nesse último sonho, um mochileiro chega a um vilarejo calmo, cercado por correntezas e moinhos d’água e com uma belíssima vegetação, praticamente um paraíso. Lá ele se depara com um ancião, que trabalhava consertando um moinho quebrado. O velho sábio conta ao jovem, que o povo daquela vila, há muito tempo, resolveu abandonar a poluição causada pela tecnologia e as grandes cidades, e viver em harmonia com a natureza, cuidando mais da saúde espiritual. Nesse mesmo lugar, naquele dia, as pessoas se preparavam para uma celebração, mas para a surpresa do viajante, seria celebrado um funeral de uma senhora que vivera até os noventa e nove anos de idade. Segundo o idoso, quando uma pessoa jovem morria, eles ficavam tristes, e guardavam luto, pois fora uma vida perdida, uma vida que não conseguiu viver o suficiente, mas quando falecia alguém que vivera como essa senhora, com uma vida plena, era motivo para se festejar.

Akira Kurosawa, sem sombra de dúvidas, foi um dos diretores mais importantes de todos os tempos, e com certeza, o maior de seu país. Porém, durante toda sua vida, fora rejeitado pela sua terra natal, acusado com frequência de ser muito ocidental. Em contrapartida, o cineasta foi o grande responsável pelo cinema nipônico ficar conhecido mundialmente. No final dos anos sessenta, Kurosawa estava em crise, com uma situação financeira caótica, tentando até suicídio no início dos anos setenta. Em 1973, foi convidado pelo estúdio soviético Mosfilm para um projeto, e assim, realizou Dersu Uzala, em 1975, um filme de sucesso e muito premiado, inclusive vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. Mas mesmo assim, continuou encontrando dificuldades para conseguir patrocínio para novos trabalhos.

Sabendo que esse grande mestre do cinema passava por dificuldades e quase caindo no ostracismo injustamente, quatro jovens, mas já consagrados diretores da chamada Nova Hollywood se juntaram para dar todo o apoio a quem eles consideravam um grande ídolo e uma de suas principais fontes de inspiração. Esses, eram nada mais, nada menos que George Lucas, Francis Ford Coppola, Steven Spielberg e Martin Scorsese. E de todo esse empenho, saíram filmes que com certeza figuram entre os melhores da riquíssima filmografia desse gênio oriental. Sendo eles, Kagemusha – A Sombra do Samurai, um épico medieval lançado em 1980, ambientado no Japão feudal; Ran, filme de 1985, baseado na peça Rei Lear, de William Shakespeare, transposta para a época dos samurais; e Sonhos, de 1990. E assim, Kurosawa provou a todos que ainda tinha muito a oferecer.

Quando Yume foi lançado, Kurosawa estava com oitenta anos de idade, e depois de cinco décadas de carreira, realizara sua obra mais pessoal, totalmente diferente das anteriores, e com um roteiro escrito somente por ele. Para que toda sua imaginação ganhasse vida, George Lucas forneceu os serviços de sua Industrial Light & Magic a preço de custo para os efeitos especiais, e Spielberg usou de toda sua influência para convencer a Warner Bros. a distribuir o filme internacionalmente. O resultado final é louvável, um filme belíssimo, com cores vivas e marcantes, colorido quando tem que ser, sombrio e tenso, quando se dispõe a tal, mostrando todo o poder da imagem cinematográfica.

Akira Kurosawa parecia ser um diretor em seu auge, conduzindo tudo com maestria, com um ótimo trabalho de direção de arte de Yoshirô Muraki e Akira Sakuragi, fotografia de Masaharu Ueda e Takao Saitô, e uma excelente trilha sonora de Shinichirô Ikebe. Através dos sonhos, o cineasta dialoga com o espectador mostrando a vida real, pura e simples, trazendo reflexões sobre temas como a infância, questões ambientais, a força da natureza, nossos traumas e fobias, a importância das artes, da cultura, a ganância humana e suas consequências, paz de espírito.

E claro, o que nunca faltava em seus trabalhos, altas doses da cultura nipônica, Kurosawa adorava os costumes, tradição e o folclore de seu país e não hesitava em mostra-los em tela. Interessante notar também, como a projeção começa, em seu primeiro sonho, com uma criança, e falando sobre infância e desobediência, e termina com um ancião e falando sobre a morte, em seu último seguimento, como se uma vida inteira se passasse em oito episódios, ao longo de suas duas horas de duração.

Sonhos é um filme grandioso, que encanta, emociona, assusta, que nos leva a refletir, cheio de poder e significado. E por merecimento, deveria ser emoldurado e exposto em um museu, visto que, trata-se de uma obra de arte, daquelas atemporais, que só um gênio como Akira Kurosawa poderia conceber.

Informações técnicas. 

Sonhos (Yume)
País: Japão – Estados Unidos
Ano: 1990
Direção e roteiro: Akira Kurosawa
Duração: 1 hora e 59 minutos

Elenco:  Akira Terao: Eu

               Mieko Harada: Fada na neve

               Chishu Ryu: Ancião

               Hisashi Igawa :Trabalhador de uma Usina Nuclear

               Mitsunori Isaki: Eu, quando garoto

               Mieko Suzuki: Irmã de Eu

               Martin Scorsese: Vincent Van Gogh

               Mitsuko Baisho: Mãe de Eu

               Toshihiko Nakano: Eu, quando criancinha

               Yoshitaka Zushi: Soldado Noguchi

               Masayuki Yui Membro do grupo de alpinistas

               Sakae Kimura: Membro do grupo de alpinistas

               Shu Nakajima: Membro do grupo de alpinistas

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