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Café Arcaico | Os Esquecidos

“Já pensou se pudéssemos trancar a miséria em vez das crianças?”

Dirigido pelo espanhol e mestre do surrealismo Luis Bunuel (1900 – 1983), Os Esquecidos é um filme de drama realizado e ambientado no México em 1950. A obra traz uma forte crítica social, retratando o abandono das autoridades governamentais em relação à população menos favorecida, vivendo em situação de miséria, assim como a ausência de programas sociais que possibilitem a mudança desse cenário atual e para gerações futuras.

Dito isso, de início o narrador faz um relato sobre grandes e famosas cidades, como Londres, Nova Iorque e Paris, que exibem sua modernidade e riqueza aos olhos do mundo, mas escondem em seu interior a pobreza de muitos lares, citando também, a grande Cidade do México, aonde a narrativa acontece, mostrando a vida de adultos, adolescentes e crianças que, sub nutridas, sem saúde e escola, encontram-se sentenciadas ao crime.

Nesse ambiente, somos apresentados a um grupo de jovens, advindos de família humilde e que passam grande parte do tempo nas ruas cometendo pequenos furtos. Dentre eles, está Pedro (Alfonso Mejía), um jovem menino que vive em um casebre com sua mãe (Estela Inda) e os irmãos mais novos, mas é rejeitado por sua progenitora, pelo fato de passar tempo demais com os amigos arruaceiros.

Nas ruas conhecemos Don Carmelo (Miguel Inclan), um idoso e músico cego que canta e toca por uns trocados, e também um menino camponês que fora abandonado por seu pai, mas todos os dias ficava na rua esperando-o, pois este prometera-lhe voltar. Mais tarde, o garoto seria apelidado de Olho Pequeno/Ojitos (Mário Ramirez) pelos demais e “adotado” por Don Carmelo.

Essas crianças “perdidas” encaram como líder um rapaz chamado Jaibo (Roberto Cobo), um jovem mais velho que os demais e que acabara de fugir da cadeia, todos o olhavam com admiração. O fugitivo agora procurava se vingar daquele que julgara ser responsável por sua prisão, Julian (Javier Amézcua), um jovem trabalhador que, hora ou outra, praticava furtos também pra sustentar sua família, e vivia, assim como os demais, em situação de miséria. E ainda diariamente, buscava seu pai desempregado em um bar da cidade, aonde este sempre voltava pra casa bêbado e carregado pelo filho.

Quando Jaibo e Julian se confrontam, Jaibo espanca seu oponente até a morte, mesmo que sem querer. Tendo Pedro como testemunha do crime, pois este, levara o ex presidiário até o trabalho de Julian. O assassinato causa uma reviravolta na vida de todos, principalmente na do jovem Pedro, que agora era cúmplice de um homicídio e tinha que conviver com o sentimento de culpa, sem poder denunciar, porque sofria com ameaças de Jaibo. E a partir dai, a trama vai se desenvolvendo, em futuro nada positivo.

Nascido na Espanha, no município de Calanda, Luis Buñuel Portolés cresceu em contato com a natureza, sempre foi fascinado pelo incomum, o extraordinário e pela morte. Com dezessete anos foi estudar em Madrid e lá ficou amigo de três figuras e parceiros de boêmia, o escritor Pepin Bello, o poeta e dramaturgo Federico Garcia Lorca e o pintor Salvador Dalí, todos estes exerceriam uma forte influência em cada um, cada qual com a sua expressão artística. Desde então, Buñuel teve contato com a arte e literatura de vanguarda da época, como o cubismo, dadaísmo e surrealismo. Mas foi em Paris, após 1925 que Luis Buñuel começou a trabalhar com cinema, sendo assistente de direção de Jean Epstein, entres outros realizadores.

Em 1929 escreveu o roteiro de Um Cão Andaluz (Un chien andalou), em parceria com Dalí, sendo este o seu primeiro trabalho como diretor. O curta-metragem de 21 minutos, que logo de início, tem a cena mais icônica de toda a obra, aonde um homem com uma navalha (o próprio diretor) corta o globo ocular de uma mulher, foi um grande sucesso e também um grande escândalo, causando horror à platéia e dando o pontapé inicial ao surrealismo cinematográfico.

Na segunda metade da década de 1930, a Espanha viveu uma Guerra Civil, a qual foi vencida pelos Nacionalistas, sob a liderança do general militar e ditador Francisco Franco, em 1939. Buñuel, por ser contrário ao que pregava o novo governo, exilou-se nos Estados Unidos no início dos anos 40, para fugir da ditadura. Porém, na América, encontrou dificuldades em trabalhar, causando um certo escândalo, após descobrirem sua simpatia ao comunismo. Sendo assim, foi morar no México, país em qual o espanhol nutriu uma grande admiração e encontrou seu novo lar. E no período que passou em solo mexicano, realizou grandiosos filmes, alguns considerados obras de arte em sua belíssima carreira, entre eles, Os Esquecidos (Los Olvidados, 1950), foco principal deste texto.

Este trabalho, escrito em parceria com o roteirista Luis Alcoriza (grande colaborador do diretor), fez com que Buñuel recuperasse seu prestígio, sendo aplaudido pela crítica e público, e saindo vencedor do prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes. Porém, criou atritos com o governo mexicano, pela forma que a Cidade do México era retratada, nenhum governante queria exportar essa imagem, a parte miserável, os problemas sociais (exatamente o que é citado logo no início do filme pelo narrador, sobre as grandes cidades que exibem somente suas riquezas…) e a realidade demonstrada é cruel, devastadora. Como cinema, remete um pouco ao neorrealismo italiano, mas o surrealismo se faz presente como principal característica de seu realizador.

Los Olvidados mostra como o descaso das autoridades, que agindo em beneficio próprio, cuidando de seus interesses apenas e nunca olhando para o verdadeiro problema, e assim, longe de trazer uma solução, pode criar “monstros”. Buñuel não redime os infratores, nem somente os mostra apenas como vítimas, a violência causada por eles é desumana, como em um momento em que os jovens delinquentes agridem o Don Carmelo, o músico cego, que nada pôde fazer, contra vários agressores, e em outro momento aonde eles roubam um homem amputado. A questão maior é, como essas crianças chegaram a esse ponto? E mesmo mostrando a violência de forma visceral, a obra nunca nos deixa esquecer as raízes dos problemas, da falta de estrutura, de atenção, a falha na criação e na formação de cada individuo, ninguém é totalmente culpado ou inocente.

Até mesmo Jaibo, que pode ser visto como uma espécie de vilão do filme, pois parecia ser um cara frio e sem arrependimentos de seus atos, quando relata seu passado podemos perceber seus problemas de infância. A mãe de Pedro, que configurava uma mãe ausente e por isso seu filho mais velho vivia nas ruas, expõe o seu lado ao contar que ficara grávida aos 14 anos de idade de seu primeiro filho, e desde então, teve uma vida sofrida, inclusive ficando viúva há alguns anos e tendo seus filhos para criar sozinha e precisando trabalhar para sustentá-los, esses motivos levavam à sua ausência. E o pobre menino Pedro, que parecia ter alguma esperança em melhorar de vida, quando tentava trabalhar, alguma consequência de sua vida de delinquência vinha à tona, atrapalhando seus objetivos, todos engolidos por um mundo perverso.

Como disse acima, “ninguém é exatamente culpado ou inocente”, certo ou errado, Don Carmelo também representa isso, um pobre cidadão que tentava ganhar a vida de uma forma honesta, passava os dias também nas ruas, e além de tocar suas músicas, clamava pelos tempos da ditadura de Don Porfirio, dizendo que naquela época se tinha ordem, que os jovens respeitavam os mais velhos, pregando que a solução para os infratores era a morte, que as autoridades deveria  matar a todos. Presava pelos bons e velhos costumes, mas na verdade, explorava e judiava do menino Ojitos que ele havia “adotado” e tentava abusar sexualmente da jovem Meche (Alma Delia Fuentes), uma menina que trabalhava e morava com o seu avô, e sofria sempre se desvencilhando dos abusos de Jaibo, e também do velho cego que tentava por vezes, lhe passar a mão, forçando-a sentar em seu colo (a sociedade conhece muitos Don Carmelo, “cidadão de bem”, moralista sem moral por ai, não?).

Nada escapa da lente acusadora de Luis Buñuel, sempre ferrenho em suas críticas. Nem mesmo o formato em preto e branco ofusca a sujeira das ruas, o ambiente caótico ao qual os denominados Esquecidos eram submetidos.

Filme tão atual, que olhamos os problemas relatados e constatamos que nada mudou, mesmo quase setenta anos depois de seu lançamento. E o pior de tudo é que, a solução parece tão distante, a desigualdade continua assustadora, como o narrador diz na sequência inicial ”Esse filme mostra a vida real, não é otimista”.

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Dados Técnicos.

Título: Os Esquecidos (Los Olvidados) – 1950
País: México
Duração: 85 minutos
Gênero: Drama
Direção: Luis Buñuel
Elenco: Alfonso Mejía, Estela Inda, Miguel Inclán, Roberto Cobo, Alma Delia Fuentes, Francisco Jambrina, Javier Amézcua, Jesús Navarro, Mário Ramírez, Efraín Arauz…

Sinopse: Nos subúrbios da Cidade do México um grupo de jovens delinqüentes passa os dias cometendo pequenos roubos. Um fugitivo de um reformatório, Jaibo (Roberto Cobo), por ser mais velho e experiente se torna o líder natural deles. Um dia, na companhia de Pedro (Alfonso Mejía), Jaibo se descontrola e espanca Julian (Javier Amézcua) até a morte, pois supostamente este o teria delatado. Pedro, que tem uma grande necessidade de carinho materno mas é ignorado por sua mãe (Estela Inda), carrega um sentimento de culpa por se considerar cúmplice de Jaibo, que se comporta como se nada tivesse acontecido. Jaibo ainda tenta seduzir a mãe de Pedro, que não lhe dá nenhuma abertura, fazendo com que o confronto entre Jaibo e Pedro seja algo inevitável.