O entrevistado de hoje fez diversos trabalhos para Recreio, da editora Abril, fez fanzines, abriu um estúdio, dá aulas e passa várias horas por dia desenhando. Então, sem delongas, venha saber tudo e mais um pouco sobre o cenário nacional de quadrinhos e sobre como Kris Zullo gerencia todos os seus afazeres.
1 – Kris, antes de tudo. Como foi que você começou trabalhar com histórias em quadrinhos?
Sou fã de HQs desde que me conheço por gente. Comecei a ler aos 4 anos para ler HQs (estava cansado de recriar as falas dos balões e aporrinhei um dos meus irmãos mais velhos para que me ensinasse a ler, e assim foi). Aos 6, 7 anos já fazia páginas de HQs e aos 13 decidi que viveria de desenhos e HQs. Mas a profissionalização veio com os fanzines que produzi na década de noventa (eu levava muito a sério aquela produção) e principalmente com a primeira encomenda de uma HQ em 2001 (“O Menino e o Passarinho”) para ser entregue como brinde a visitantes numa feira do livro infantil em Bauru. Depois disso fiz algum quadrinho institucional, pelo Estúdio Mol em São Paulo, até começar em 2006 a conceber a primeira de muitas coleções da revista Recreio, então da editora Abril. Cada coleção tinha de 18 a 22 bonecos e estes eram apresentados em HQs de 8 páginas semanais. Fiz 4 coleções pelo Estúdio Mol, e depois outras 10 pelo Kazullo Estúdio. Eu sempre coordenava a produção toda: hora fazia o lápis, hora a arte-final, hora as cores, fazendo sempre o balonamento, a direção de arte e o atendimento ao cliente. Contando com excelentes ilustradores/quadrinistas como parceiros (Robson Moura, Vanessa Reyes, Rosana Valim, Felipe Gressler, Alex Shibao, Zuza Avelino, Jonas Gomes, Leonardo Maciel e Thaís Robba), produzimos mais de 2.400 páginas de HQs infantis para a revista Recreio, da editora Abril, entre 2007 e 2012, voltando em 2015 para mais uma temporada pequena, de 2 páginas por semana, já pela editora Caras. Certamente esse volume de produção me deixou bastante afiado para desenvolver qualquer ou todas as etapas da produção de uma HQ. Agora com os independentes até editoração e fechamento de arquivo pra gráfica eu faço.
2 – São diversos anos de estrada, com algumas dezenas de publicações. Mas existe uma em especial que me chama a atenção, seu nome é “Ao Léu”, nela quatro histórias sobre encontros e desencontros acontecem. De onde surgiu inspiração para criar algo nesse estilo?
Gosto muito de histórias do cotidiano e nos últimos anos a maioria das histórias que escrevo é sobre velhos. No “Ao Léu Vol. 1” as duas principais HQs do Gibi, traz velhos como protagonistas; no volume 2 (em produção) apresento 3 momentos da vida de um personagem, sempre começando pela velhice, no volume 3 (todas HQs já estão escritas) também teremos idosos como protagonistas, e duas das HQs de maior fôlego que tenho para contar (no futuro, claro) traz protagonistas em idades avançadas. Um dos motivos disso certamente é o fato de eu gostar muito de desenhar velhos. Mas vai além, acho que vai de encontro com o tanto de conversas que tive e tenho (com grande prazer) com velhos, alguns sábios, outros nem tanto, certamente tem a ver com minha vontade de esmiuçar aquela história trazida pelas lembranças, reviver algo que nunca vivi, sabe? É claro que um amontoado de anos não faz uma pessoa boa ou interessante, dependendo da sua trajetória, escolhas, encontros e desencontros, este pode ser tanto um ser iluminado e leve quanto um ser carregadíssimo e desagradável. De todo modo essas histórias me interessam.
No caso das histórias do Volume 1, elas vieram de fontes diversas. Em ‘Visita Ilustre’ eu quis prestar uma homenagem ao Flávio Colin, quadrinista brasileiro que considero um dos meus mestres e dos maiores expoentes da área, narrando nosso encontro e conversa sobre HQs e seu fazer. A segunda HQ “Inspiração” foi lançada inicialmente na Zupi nº 22, de abril de 2011, quando me convidaram a participar como consultor e depois me ofereceram uma dupla para eu ilustrar sobre meu processo de inspiração e achei por bem fazer isso em forma de HQ já que aquela foi uma edição toda dedicada às HQs. Em ‘Ao Vencedor as Batatas’, a terceira HQ que muita gente chama de ‘Point Games’ por conta de a história começar com um close na fachada da locadora de videogame que trabalhei de 1993 a 1999, conhecemos Zazur e Titilo dois grandes amigos, em idade bastante avançada e que viviam em pé de guerra. Os personagens existiram e hoje são falecidos mas não é uma história real e sim uma ficção baseada em vários causos que presenciei, enquanto esperava para pegar carona com meu pai no Bar do Nico. Engraçado que consegui dar um Ao Léu Vol. 1 de presente a quase todos os personagens que aparecem na história, agora senhores de cabelos grisalhos e que ainda frequentam o bar do Nico, hoje “tocado” por pelo irmão do falecido Nico. E a última HQ ‘Algemas de Papel’ foi a primeira HQ ao léu que fiz roteiro e arte (antes disso já tinha feito uma HQ com roteiro de Zoilo Bolognese que foi publicada no Ao Léu #00) e data de Julho de 1999. Como decidi trazer de volta o “Ao Léu” achei que seria interessante publicar essa HQ, feita a 19 anos pouco antes de eu completar 19 anos. E ela fala sobre preconceitos, intolerâncias, e como as pessoas muitas vezes lidam com eles. E mesmo que tenha passado um bom tempo desde que a produzi, ainda gosto bastante da HQ que é a única do Gibi feita tradicionalmente no lápis, papel e nanquim. As demais foram desenhadas e finalizadas digitalmente usando Photoshop CC e uma Cintiq 21UX.
3 – Você gosta desses tipos de histórias que mostram “vida real”, poderia nos indicar uma?
Gosto muito dessas histórias, sendo elas baseadas em fatos reais ou não. Sempre me encantam as histórias que poderiam estar acontecendo aqui, ou na casa ao lado. Como indicar apenas uma me parece mais difícil, vou deixar algumas indicações:
– Pequenos Milagres, Will Eisner.
– Coisas de Adornar Paredes, José Aguiar.
– Encruzilhada, Marcelo D’Salete.
– EntreQuadros – Ciranda da Solidão, Mário Cesar.
– A História de Joe Shuster, o Artistas por trás do Superman, Julian Voloj e Thomas Campi.
– Crônicas Birmanesas, Guy Delisle.
– Verões Felizes, Zidrou e Jordi Lafebre.
4 – De todas as histórias que você trabalhou, qual você guarda com mais carinho?
Já fiz um tanto de coisas daí é bem difícil elencar UMA, mas talvez algumas das coleções das HQs da revista Recreio ocupem esse lugar especial. Poxa, difícil, mas vamos lá “Barco do Terror”, “Letronix”, “Megaferas” e “Lorde Bork”. Todas foram feitas para a revista Recreio, quando ainda era do grupo Abril, com os excelentes roteiros do Kaled Kalil Kanbour. Eu me divertia muito desenhando, tentando deixar meus desenhos tão engraçados quanto os layouts que o Kaled enviava. E sempre, sem exceção, eu dava boas risadas enquanto lia os roteiros, depois quando os desenhava, e ainda ria quando recebia a revista impressa.
“Força Animal” que fiz com o Wellington Srbek pela editora Nemo também tem seu lugar especial no meu coração (risos). Engraçado porque fiz uma HQ infanto-juvenil de super-heróis brasileiros num momento que já não lia mais quadrinhos de super-heróis, e muito menos me imaginava fazendo uma história do gênero. E claro, que “Ao Léu Vol. 1” e “O Menino e o Passarinho” me dão bastante orgulho!
5 –De todas as suas profissões (professor, ilustrador, diretor de arte…), qual você sente mais prazer em exercer?
Vale dizer “todas”? Porque funciona mais ou menos assim… preciso desenhar todo dia, é uma necessidade bem cruel que me amola muitas vezes, mas sem desenhar meus dias ficam incompletos. Ainda que desde 2014 decidi reaver meus finais de semana e raramente desenho nestes dias. Direção de Arte é algo que considero importantíssimo a um bom trabalho em Ilustração, HQs ou Animação, e seja coordenando uma equipe, ou desenvolvendo o trabalho todo sozinho, é minha preocupação inicial ao desenvolver um trabalho. E a vida de professor, ah a vida de professor… eu aguento até um ano sem dar aula, mais que isso começo a ficar deprimido (risos). Sinto que meu trabalho teve um importante ponto de virada quando comecei lecionar. O fato de nunca ter feito um curso de desenho deixou-me de certo modo cego para o tanto de conhecimento que um desenhista tem de adquirir. Algo que só percebi dando aulas porque foi quando precisei sistematizar meu conhecimento para conseguir passar adiante. Para preparar as aulas me vejo reestudando assuntos já assimilados e quando vou para a aula aprendo mais e melhor aquelas coisas que eu já sei. Meu método de aula é todo dialógico, e leva muito em consideração o conhecimento do aluno, nessas acabo me tornando amigo de muitos (inclusive ajudei uns tantos a entrarem no mercado de trabalho), e isso parece me trazer uma troca inestimável de conhecimento. Então nas aulas eu aprendo comigo mesmo, ao sistematizar e passar adiante algum conhecimento já introjetado em mim e aprendo com os alunos que sempre me mostram modos diferentes de ver uma mesma coisa. Adoro isso! Acho que não respondi né? (risos).
6 – Aproveitando que estamos falando de suas profissões. Nós sabemos que ser professor ou quadrinista não é fácil, e ser dono de um estúdio?
Ser dono de estúdio te obriga a olhar também para outras coisas que não só o desenho, ou a aula. Exige que se consiga organizar o espaço de produção, o trabalho, o cronograma, fazer o atendimento ao cliente e a ponte deste com a equipe que está produzindo. Envolve saber delegar trabalhos e funções (algo que quem tem mania de controle sofre para assimilar), ter pulso firme para defender tuas ideias e posições, bem como saber negociar valores, prazos e condições de trabalho. Pralém destas questões que parecem mais práticas, tem que se ater também à parte burocrática (no meu caso, eu mesmo que cuido disso com auxílio de uma contadora), e ficar muito esperto com notas, pagamentos, atualização de site ou páginas em redes sociais. Enfim, tem muito de trabalho administrativo que assusta a muito artista, mas que também é parte do trabalho. Para se ter uma ideia levei quase um ano para aceitar que tendo o estúdio eu não conseguiria passar o dia inteiro somente desenhado. Que teria de tirar um período do dia, às vezes mais, para resolver várias coisas que não é desenhar. E com isso passei a trabalhar 14, 16 horas, porque não via como trabalho aquelas 3 ou 4 horas do dia que eu gastava resolvendo questões mais administrativas do estúdio (risos), nada como o tempo para nos ensinar a ver as coisas melhor.
7 – A internet é um campo complicado, existem muitos “haters” de conteúdo nacional por ai. Você sofre muito com eles?
Sofro nada. Acho que não sou tão conhecido ou famoso a ponto de ter pessoas que percam, ou gastem seu tempo, para tentar me azucrinar. Então é tranquilo. Estou na profissão há 24 anos e fico muito feliz de ver que nos últimos 10, 15 anos os quadrinhos nacionais tem tido maior alcance e aceitação, por aqui e fora. Tem muito mais gente consumindo quadrinho brasileiro e isso é ótimo tanto pra cena do quadrinho nacional (já que ainda não dá para dizer em um “mercado de HQ nacional”) quanto pra quem produz. O que sinto é que ainda precisamos formar público leitor. Precisamos ter mais leitores e conseguir trazer os não leitores de quadrinhos ao circuito. Eu gostaria de todo ano lançar pelo menos um quadrinho infantil, porque, além de gostar muito do gênero acredito que é o melhor lugar para formação de público leitor. Ano passado relancei “O Menino e o Passarinho”, este ano infelizmente não lançarei nada, mas pro ano que vem quero retomar alguns projetos com o Kaled para trazermos mais quadrinhos infantis ao público brasileiro.
8 – Quais são seus projetos para o futuro?
Sempre estou pensando em histórias, e gosto da ideia de ter mais história na cabeça do que tempo para executá-las. Isso me dá muito ânimo para terminar o projeto que estou fazendo no momento para começar o próximo. Tem alguns anos que trabalho com a ideia de ter projetos pra 2 ou 3 anos no futuro, (risos). Assim garanto também sempre ter o que produzir. Mas falando concretamente: estou finalizando o “Ao Léu Vol. 2: 3 Tempos” para lançamento no começo de 2019. Agora em Dezembro, eu e o Kaled (roteiro) fomos contemplados no 1º Edital de HQs de São Paulo, então em janeiro ou fevereiro começo a produzir “Província Negra” para lançamento no segundo semestre de 2019. Já tenho todas histórias escritas e esboçadas para o “Ao Léu Vol. 3”, com estudo de personagens e cenários desenvolvidos que pretendo lançar em dezembro de 2019, que comecei a produzir antes do “3 Tempos”, mas que ficou para depois. Como disse a pouco, pretendo também retomar algum dos projetos de HQ infantil com o Kaled e pra fechar em 2019 começo a me aprofundar na pesquisa e entrevistas para uma HQ biográfica que fui convidado a produzir, sobre um grande mestre do quadrinho nacional, mas que pretendo lançar só em 2022 para usar um bom tempo no roteiro, que certamente será meu maior desafio. E tem ainda outros “Ao Léu” a caminho. Pralém do volume 3, tenho histórias (em temas) para mais 3 edições e uma especial com mais páginas. Fora do universo dos quadrinhos quero usar 2019 para trabalhar meu canal no youtube e montar cursos online. Tenho dois cursos no site da eduk.com e quero montar outros 3 cursos.
9 – Jogo rápido.
Personagens preferidos? Hulk na infância e adolescência, depois Hellboy e Tom Strong, Calvin e Haroldo (pra vida toda) e Lorde Bork (em “Galácticos”, “Desafio Alien” e “Lorde Bork”, esta ainda inédita, trata-se de uma criação minha e do Kaled que teve suas histórias publicadas na revista Recreio)
Melhor história em quadrinho que você leu? Elencar uma única história como a melhor é até cruel, porque tem MUITAS Histórias em Quadrinhos fantásticas. Mas certamente nunca li tanto uma HQ quanto leio Bakuman, com roteiros do Tsugumi Ohba e arte do Takeshi Obata, mesmos autores de Death Note. Já Li umas 5 vezes os 20 volumes, e todas as vezes quando acabo de ler fico meio triste porque acabou e já sigo no aguardo de uns 3 ou 4 meses para reler a obra toda. Conheço a história de cabo a rabo, mas sempre me surpreendo com a construção dos personagens, com a beleza do traço e da narrativa e com quão dura é a rotina de um mangaká.
Roteirista preferido? Will Eisner
Desenhista preferido? Flavio Colin, Julio Shimamoto, Will Eisner, Eduardo Risso, Ivo Milazzo, Sergio Toppi, Alberto Breccia, Alex Toth, Joe Kubert e Garcia Lopez (não consigo dizer um único, como deu pra perceber, risos)
10 – O que o Kris Zullo com toda experiência que adquiriu ao longo dos anos diria para o Kris Zullo do passado?
Continue treinando, cuidado com os excessos e curta bastante seus amigos e família.
11 – Para finalizar. Quem é Kris Zullo?
É um cara comum, que gosta muito de desenhar e contar histórias; que não costuma usar camisetas com estampas e prefere um prato todo colorido cheio dos legumes e das verduras do que um churrasco; que vê na cozinha uma arte, terapia e momento de carinho à família; que gosta de tocar em seu violão as músicas que compôs para os pais, a esposa, os filhos e amigos e que ouve quase que exclusivamente música brasileira (dando espaço para o Jazz, Blues, Rock estrangeiro); que não pode sentir um cheiro de antiguidade que já pára todas suas atenções, e que sai desejando “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” a todos que cruzarem com ele o olhar, nem que seja por fração de segundos. Além é claro de ser um apreciador das pequenas coisas da vida, das boas conversas, das noites estreladas, da cerveja e das risadas com os amigos.
12 – Pode deixar todos os seus sites e redes sociais para que o leitor possa saber mais sobre você e adquirir suas histórias.
Aos interessados em adquirir meus quadrinhos, prints, artes originais e afins: Kazullo Estúdio Loja
Para conhecer o trabalho do estúdio: Kazullo Estúdio | Flickr | Facebook
Para ver trabalhos pessoais e estudos, bem como alguns trabalhos encomendados: Instagram | Facebook | Twitter
Para conhecer meus quadrinhos: Facebook | Tapas
E para conhecer meu canal no youtube: Kriz Zullo
Kris, o HQ’s com Café agradece o tempo concedido. Desejamos sucesso nessa sua caminhada, e se você quiser falar alguma coisa, essa é sua hora.
Muito grato ao HQ’s com Café pela entrevista, foi uma honra e um prazer. Aos que desejam adentrar à profissão, seja em Ilustração, HQs ou Animação deixo por aqui a dica que já a uns bons anos dou a todos meus alunos, e que me foi passada pelo grande Walmir Igayara na época que eu era fanzineiro e trocávamos correspondências: Desenhe, desenhe, desenhe e pra descansar, desenhe mais um pouco! Forte abraço a todos e, leiam quadrinhos nacionais!
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