Antes de começarmos, vamos ter spoilers do livro e do filme nesse texto. Se não quiser descobrir nada, leia e assista, volte depois =)
Venho lendo muita coisa ultimamente, mas pouco falo sobre as obras aqui no site. Faz algum tempo que comparei Hannibal e, mais tempo ainda quando falei dos últimos livros que li do Bukowski.
Recentemente li o belíssimo “Trem Noturno para Lisboa“, com uma história extremamente cativante o livro lhe faz pensar em todos os assuntos possíveis (religião, medo, solidão, morte, traição, amor…).
Como é de praxe com qualquer ser humano, após nos apaixonarmos por algo, queremos consumir até a última gota daquela obra. Com “Trem Noturno para Lisboa” não foi diferente, logo após o término do livro rumei para o filme.
Arrependimento define essa decisão.
No livro de Peter Bieri temos uma história contada nos mínimos detalhes. As emoções dos personagens são esmiuçadas e o cenário é tão bem descrito que salta pelas páginas.
Tanto é que fiz até um post sobre alguns trechos marcantes do livro.
São 460 páginas que imergem o leitor inteiramente naquela história. É algo indescritível, o autor consegue criar personagens tão bem feitos que sentimos que estamos vivenciando todas as situações.
Na história do livro temos Raimund Gregorius, um professor de línguas, ele é metódico e, segundo sua ex-mulher (Florence), chato. Um dia ele vê uma portuguesa querendo pular de uma ponte. Ele salva a moça, e durante uma breve conversa, algo muda dentro de seu ser.
Gregorius não para de pensar no doce sotaque português dela. Ele vai até um sebo e encontra um livro de reflexões escrito por Amadeu de Almeida Prado. Encantado com as sábias palavras do médico ele decide pegar um trem que partia para Lisboa, para assim, descobrir quem é esse escritor que mexeu com ele.
A premissa é essa. Gregorius sai de sua vida pacata em Berna (Suiça), para ir até Portugal, na esperança de conhecer o autor daquele livro.
Durante a narrativa somos apresentados para vários personagens que são extremamente essenciais no desenvolvimento da mesma. Silveira e Doxiades tem relacionamento com Gregorius, o primeiro ele encontrou no vagão, posteriormente acabou indo residir na casa dele. O segundo é seu oculista/conselheiro.
Melódie é irmã de Amadeu, ela também é importante. Florence é citada inúmeras vezes. Mas a principal é Maria João. A moça foi uma paixão de Amadeu na adolescência, ela é descrita como intocável para o futuro médico.
Sua amizade com ela continua durante os anos, sendo que, ela sabia segredos que nem sua irmã (Adriana) sabia. Maria João “completava” Amadeu do Prado.
Reparou em todos esses nomes que citei? Silveira, Doxiades, Melódie e Maria João. Quatro personagens importantes para o livro. Nenhum aparece no longa.
Até “aceitaria” deixar os três primeiros de fora, Maria João, nunca.
O filme tem cerca de uma hora e cinquenta minutos de duração. É óbvio que encaixar 460 páginas nesse tempo é praticamente impossível, então porque não fazer um filme de 3 horas?
Ou faça bem feito, ou não faça. Em menos de 10 minutos de trama Gregorius já tinha viajado. Tudo acontece em um passe de mágica. O professor passa “ter vida” ao viajar. Isso fica bem claro nas paletas de cores do longa. Em Berna, temos um fotografia cinza, em Portugal, um amarelo vivo.
Mas não vamos nos ater aos detalhes técnicos. O Gregorius que encontra Adriana no livro não é o mesmo do filme. Nas páginas lidas você vê a dificuldade em encontrar os personagens, o receio de abordar cada um deles e ser maltratado. O problema com o idioma, o medo de ser chamado de louco pelo pessoal do Liceu (Berna).
No filme nada disso existe. Adriana é encontrada em um passe de mágica. Aliás, tudo acontece em um passe de mágica. Todas as histórias são expostas rapidamente, não absorvemos nada. Personagens vão e vem, contam histórias superficiais e, o pior, quando se abrem, se abrem rapidamente, como se já existisse uma intimidade.
O Liceu (Portugal) é outro ponto que me deixou chateado com a produção. No livro ele é descrito de forma primorosa. Todos os detalhes, Gregorius senta na escada para se imaginar no lugar de Amadeu, pensa qual foi o local que ele se sentou para ver Maria João, vai até onde ele fez seu memorável discurso. Gregorius se apaixona pelo local, até objetos de acampamento ele leva para lá.
Cerca de cinco minutos é o que temos do colégio no filme. Fim.
Sim, no filme apressado do diretor Bille August, nada lhe impactará. A pressa foi tanta que certamente o longa sairá da cabeça do telespectador rapidamente. É impossível não comparar os dois, mesmo sabendo que as mídias são totalmente diferentes.
Amadeu é complexo, seu universo é complexo, sua história é complexa, história essa que jamais poderia ser posta em um longa de menos de duas horas.