Texto contém spoilers.
Casos em que um pobre casa com um rico que está quase morrendo não é novidade. Amigos que só aparecem nas horas de festa é coisa comum. Tudo é jogo de interesse, até dentro do antro familiar.
Franz Kafka demonstrou isso de uma forma inusitada em seu livro “A Metamorfose”. Nele encontramos Gregor Samsa, um vendedor comum. Trabalha para sustentar sua família, e faz disso seu único modo de vida. Porém, em um belo (péssimo) dia, ele acorda transformado em um inseto gigantesco.
Suas preocupações?
Como vou trabalhar? Como minha família vai se sustentar? Estou atrasado!
Gregor não consegue nem se levantar, vira para um lado, para outro, tudo em vão. Nesse meio tempo o chefe do escritório vai até sua casa, para saber qual o motivo do atraso.
Nesse ponto temos um trecho que demonstra um dos vários perfis de chefes que existe por ai: “Esperamos que não seja nada de grave. Ainda que nós, homens de negócios, sejamos com frequência forçados, mal ou bem, como queiram, a colocar as nossas obrigações profissionais bem à frente de qualquer ligeira indisposição”.
Gregor leva uma eternidade para se locomover e, ao abrir a porta, todos se assustam.
Qual a reação de Gregor? Falar ao seu chefe que ele iria trabalhar: “Bem, vou já vestir-me, embrulhar as amostras e sair (…) não estou inválido e quero ir trabalhar”.
Note que seu senso de urgência não mudou. O trabalho acima de tudo.
Enquanto Gregor falava, seu chefe ia embora. As falas de Gregor eram incompreensíveis. Seu pai não hesitou e correu para ajudar…
…mas para ajudar sua família, que agora já não conta com Gregor.
O pai pega a bengala que o chefe do escritório esqueceu e começa bater com ela no chão, para assim, espantar o inseto/filho.
Gregor tenta clamar por ajuda, mas não adianta.
Esse desenvolvimento leva cerca de um terço do livro. Aqui já temos total noção de quanto o rapaz se dedicava para ajudar seus familiares, e também já vemos os sinais de mesquinharia de sua família.
É bom salientar que no começo do texto ele cita que só trabalha por causa da dívida dos pais.
O rapaz entregou sua vida para um patrão mesquinho, assim ele conseguiria saldar o que sua família devia. Mas todo esforço virou pó quando ele sofreu a metamorfose. A primeira reação de seu pai foi espaventar o filho, para não ter que ficar olhando para aquela figura horrenda.
Seu pai chegou até agredir o “filho” para que ele voltasse rapidamente para seu quarto.
O enredo do livro continua com o período de adaptação de Gregor. Sua irmã é a única que mostra algum tipo de compaixão e tenta levar algo para ele comer.
Mais uma vez, Gregor, pensando no bem de sua família, todo momento que escutava alguém chegar, corria para se esconder, afinal, sua família não merecia ver algo tão grotesco.
O tempo passa, as coisas pioram. Sua residência não é mais deixada só. Sempre tinha dois membros da família no local. A empregada, em prantos, pediu para ser mandada embora. O caos predomina.
Em certa altura Gregor fica atrás da porta ouvindo seus pais, e só esboça um sinal de alegria quando escuta seu pai falar que eles tinham algum dinheiro guardado.
Note, caro leitor, Gregor estava preocupado com a situação da família, em alguns momentos ele esquecia dos seus problemas físicos, e focava totalmente no bem estar de seus amados.
Ao contrário de seus familiares, que o abandonaram sem oferecer algum tipo de ajuda. Aliás, o relacionamento entre eles nunca foi algo admirável:
(…) ainda que Gregor ganhasse o suficiente para prover às necessidades da família, o que efetivamente fazia. Tanto a família como Gregor se tinham habituado a isso, aceitando reconhecidamente esse dinheiro à medida que Gregor o oferecia, sem, que, apesar disso, houvesse uma relação mais calorosa. Só a sua irmã se tinha mantido, apesar de tudo, próxima (…)
Coloque dinheiro em minha mesa, me sustente, esqueça o afeto. É isso o que aconteceu.
Gregor descobre que o dinheiro dado ao seu pai não era gasto totalmente, ele tinha um capital guardado rendendo juros.
Você pensa que ele ficou revoltando com essa situação? Óbvio que não, ele ficou extremamente entusiasmado com o fato de seu pai ter sido prudente. O dinheiro era uma quantia considerável, que daria para quitar o saldo com o patrão de Gregor.
Mas não daria para passar muito tempo (talvez dois anos), ao saber disso Gregor sente tristeza e vergonha.
Um mês se passou, ninguém tinha se acostumado com aquela situação. Gregor começou se cobrir com um lençol, para que sua irmã não fosse obrigada olhar para ele ao entrar no quarto.
Creio que salientei com ímpeto a vida que Gregor levou para sustentar sua família.
Pois bem, o livro continua nessa toada, em certa altura Gregor sai do seu quarto, seu pai, não quer isso, então ele arremessa maçãs contra o rapaz. Uma delas fica encravada em seu torso.
Ninguém o ajudou, ele carregou aquela fruta apodrecendo em seu corpo por mais de um mês. Sua irmã, que limpava seu quarto e lhe dava comida, começou diminuir a ajuda. Chegou o ponto que ela desejou sua morte.
E não era para acabar com o sofrimento de Gregor, mas para acabar com o seu sofrimento.
Mas o tão sonhado momento chegou…
“Bem – disse o senhor Samsa -, agora podemos dar graças a Deus” (sobre a morte de Gregor).
Gregor morreu, seus pais choraram brevemente. Mas logo em seguida…
(…) saíram de casa todos juntos, o que já não faziam há meses e tomaram o eléctrico para os arredores da cidade (…) confortavelmente sentados, pensaram nas perspectivas de futuro e, pesando bem, não lhes pareciam assim tão más (..)”.
Lógico que uma situação dessas é utópica, mas vamos trazer para o contexto atual.
Quantas vezes alguém foi seu amigo naquele momento em que ele necessitava e após conseguir algo, deu o fora.
Quantas vezes você emprestou dinheiro para alguém que nem satisfações lhe deu depois.
Quantas vezes você deixou seus compromissos para ajudar alguém e no momento que você precisou, essa pessoa não quis nem saber.
A vida é cheia dessas coisas, encontramos muitos salafrários pelo caminho. Mas temos que adquirir conhecimento para conseguir diferenciar o joio do trigo. O interessado do interesseiro.
Aprenda, existem lutas que não merecem ser lutadas, existem pessoas que merecem ser deixadas, mas existe alguém que você não pode deixar em segundo plano…
…VOCÊ!
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