“As pessoas acreditavam que quando alguém morria
um corvo carregava a sua alma para a terra dos mortos.
Mas, às vezes, alguma coisa ruim acontecia..”
Sob a premissa acima, parcialmente descrita, tem início um dos grandes clássicos, e também, um dos filmes mais icônicos da década de 1990, “O Corvo” (The Crow). Dirigido por Alex Proyas, baseado na comic book de James O’Barr e estrelado por Brandon Lee, Rochelle Davis, Ernie Hudson e Michael Wincott, essa obra gótica de suspense, ação e fantasia, traz a trágica história do casal Eric Draven (Lee) e Shelly Webster (Sofia Shinas), vítimas de um brutal assassinato por uma gangue de vândalos – a noiva foi vítima de estupro antes de sua morte – na véspera de seu casamento, na chamada “Noite do Diabo” (noite que antecede o Halloween). Um ano depois, Draven é trazido de volta à vida pelo corvo, para resolver os assuntos pendentes, acertando as contas com seus algozes, e guiado pela ave, dá início à sua vingança, antes de finalmente poder descansar em paz.
O enredo sombrio, pontuado por perda, dor e vingança, foi motivado por uma tragédia que assolou a vida de seu autor, James O’Barr, quando, no final da década de 1970, sua noiva Beverly foi atropelada por um motorista embriagado, vindo a falecer em consequência do acidente. Profundamente abalado e com dificuldades em lidar com o luto, O’Barr se alistou no exército e, nas horas vagas, começou a desenvolver a história em quadrinhos, como uma válvula de escape, que relatava um pouco sofrimento pelo qual ele estava passando. Além disso, o quadrinista também teve como inspiração um crime bárbaro ocorrido em sua cidade natal, Detroit, onde um casal foi assassinado por causa de um anel de noivado. Após alguns anos de criação, a graphic novel O Corvo, foi publicada de forma independente, em 1989, se tornando um sucesso underground e foi se popularizando cada vez mais, com o passar do tempo.
A adaptação cinematográfica de The Crow começou a ganhar forma já no início da década seguinte, porém, a Paramount Pictures estava com a intenção de fazer do filme um musical estrelado por Michael Jackson!? Tal ideia causou risos em seu autor, achando aquilo hilário e absurdo. Claro que, esse objetivo não foi adiante e o projeto começou a ganhar seus contornos assombrosos, semelhantes à HQ, quando o cineasta egípcio, naturalizado australiano, Alex Proyas foi escalado para conduzir a obra, juntamente com os roteiristas David J.Schow e John Shirley, que ficaram responsáveis por transpor a história em quadrinhos para o cinema, trabalho que durou quase dois anos. Além do Rei do Pop, outros atores foram cogitados para o papel de Eric Draven, sendo eles, Johnny Depp (o favorito de James O’Barr), River Phoenix e Christian Slater, mas todos recusaram. Dessa forma, outro jovem ator em ascensão no cenário de Hollywood foi escalado, Brandon Lee, filho do astro do cinema e mestre das artes marciais, o lendário Bruce Lee.
Brandon, até aquele momento, havia desempenhado pequenos papéis em alguns filmes, e tinha em O Corvo sua chance grande para o estrelato, no entanto, sua escalação desagradou James O’Barr momentaneamente, temendo que o filme se tornasse algo sobre kung fu. O descontentamento do criador não durou por muito tempo, na medida em que ele e Brandon Lee foram se conhecendo melhor, e o ator foi demonstrando cada vez mais seu talento ao desempenhar Eric Draven e, trazendo consigo ideias criativas que agregaram muito ao roteiro. A dedicação, inteligência e desenvoltura de Lee surpreenderam O’Barr, que ficou impressionado ao descobrir que Brandon não só conhecia de cor a sua obra, mas também havia decorado até os diálogos da história em quadrinhos. Ali, durante as filmagens, uma grande amizade surgiu entre o ator e o quadrinista, aliás, ao que se sabe, Brandon Lee se deu com todos os envolvidos na produção.
Com um orçamento inicial de 15 milhões de dólares, as filmagens se iniciaram em fevereiro de 1993, sob a batuta do promissor Alex Proyas, ainda no começo de sua carreira, sendo O Corvo o seu segundo filme – seu primeiro trabalho na direção havia sido “Spirits of the Air, Gremlins of the Clouds”, projeto independente rodado na Austrália em 1989 – A princípio, Proyas queria que a projeção fosse rodada em preto e branco, mas sua visão não foi bem aceita, então, o diretor optou por se utilizar de o menor número de cores possíveis, ficando o produto final com tons predominantemente acinzentados, alternados com o vermelho, em uma ambientação bem sombria e tenebrosa. Todo o desenvolvimento se desenrolou durante algum período com alguns contratempos devidos à acidentes ocorridos no set de filmagens, até que em 31 de Março de 1993, a produção foi tragicamente interrompida, com a fatalidade que infelizmente causou a morte de Brandon Lee.
Os fatores que levaram ao fatal acontecimento, se deram na seguinte ordem: Para gravar uma das cenas do filme, foi necessário a utilização de uma arma contendo munição de verdade, com o projétil mas sem pólvora, por questões de deixar a cena mais real. Após a filmagem dessa cena em questão, onde ocorreu tudo dentro da normalidade, foi feita a limpeza da arma e a mesma foi preparada, com cartuchos de festim, comumente utilizados, para a próxima passagem a ser gravada. O que acabou passando despercebido é que, um resquício de um projétil ficou preso no cano do revólver. O combinado para a próxima gravação era de que, o protagonista Eric Draven chegaria em seu apartamento, carregando uma sacola de supermercado com uma bolsa cheia de sangue artificial – essa cena seria um flashback, mostrando como ele e sua noiva foram assassinados – ao adentrar sua residência, Eric daria de cara com os vândalos violentando sua amada Shelly e reagiria, partindo pra cima dos criminosos.
Nessa reação, um dos membros da gangue, “Funboy”, personagem interpretado por Michael Massee, efetuaria disparo que, no planejado, a bolsa de sangue nas mãos de Brandon Lee explodiria naquele momento, dando o efeito necessário para a conclusão da cena. Mas a explosão causada pela pólvora contida na arma, fez com que o pedaço de projétil que estava alojado em seu cano, sem que ninguém soubesse, se soltasse e o mesmo foi lançado em direção ao ator, atravessando a sacola que ele carregava e perfurando seu abdômen. Ao perceberem o que realmente havia acontecido – percepção que não ocorreu logo de imediato – os membros da equipe de produção ali presentes, encaminharam a vítima para um hospital, onde ele foi submetido a uma cirurgia de emergência, porém, após mais de dez horas e diversas tentativas de reanimação, Brando Lee não resistiu aos ferimentos e faleceu aos 28 anos de idade.
Um inquérito foi aberto pela polícia para apurar as causas do acidente, e se houve negligência ou dolo, por parte de alguém, entre todos os envolvidos. Várias especulações foram lançadas acerca da morte de Brandon Lee, com teorias que davam conta de que o ator havia sido assassinado de forma intencional, conspirações semelhantes às lançadas sobre a morte de seu pai, que também morreu jovem, aos 32 anos de idade, vítima de um edema cerebral. Nenhuma ação dolosa foi apontada pela investigação ao ser concluída, e ninguém foi responsabilizado pelo incidente, ficando tudo na conta de um trágico e terrível infortúnio. Michael Massee, responsável pelo disparo que matou seu companheiro de trabalho, ficou profundamente abalado, tendo que se afastar da indústria cinematográfica por quase um ano, na tentativa de se recompor, antes de retomar suas atividades. O ator que faleceu em 2016, vítima de um câncer no estômago, relatou que nunca superou o ocorrido e que também nunca teve coragem de assistir O Corvo.
Além da infeliz coincidência de o disparo que matou Brandon Lee ter acontecido justamente gravando a cena na qual Eric Draven foi assassinado, outra similaridade entre o ator e personagem que chamou a atenção na época, era que, assim como Draven, ele também estava noivo e de casamento marcado com Eliza Hutton que, trabalhava na indústria cinematográfica como assistente em diversas funções. Naquele período, Eliza já havia realizado alguns trabalhos com o cineasta Renny Harlin, por exemplo, inclusive Duro de Matar 2. Aliás, ela e Brandon se conheceram no escritório de Harlin, em 1990, já que seu futuro noivo e o diretor compartilhavam do mesmo agente. O casamento estava marcado para logo depois do término das filmagens. Eliza e a mãe de Brandon, Linda Emery, foram as principais incentivadoras de que a produção voltasse à ativa e ambas procuraram o diretor Alex Proyas lhe dando forças para seguir em frente com o filme e finalizá-lo como uma homenagem a Lee.
Após a tragédia, a Paramount Pictures abandonou o projeto, ficando a Miramax Films com a responsabilidade de finalizar e distribuir O Corvo. Quando Alex Proyas e sua equipe voltaram aos estúdios e as atividades foram retomadas, um dublê precisou ser contratado para substituir Brandon Lee. A maioria das cenas do ator já haviam sido filmadas, até porque, quando o fatal acidente aconteceu, faltavam poucos dias para o término das gravações, mesmo assim um árduo trabalho foi realizado para que ninguém notasse a diferença na troca do intérprete. O substituto contratado foi Chad Stahelski, hoje em dia muito conhecido por ser o diretor da saga de John Wick, estrelada por Keanu Reeves, e que na época trabalhava como ator e dublê. Stahelski era amigo de Brandon Lee e também dominante das artes marciais, podendo assim, desempenhar movimentos semelhantes aos do falecido ator e amigo, sendo esse, um fator importante na substituição.
Alguns truques tiveram que ser utilizados, como por exemplo, as cenas com o dublê nunca davam foco em seu rosto, eram filmadas ao longe e, até mesmo recursos digitais (CGI) foram necessários, com a inserção do rosto de Brandon Lee em seu substituto. O roteiro precisou ser, em parte, reescrito, pois algumas cenas de flashback com Eric Draven ainda não haviam sido concluídas. Uma das alterações feitas foi a morte do personagem que, por motivos óbvios e já citados, a cena original foi deletada, então, o golpe mortal foi alternado de um tiro para uma facada, seguida de sua queda pela janela do apartamento. O filme, antes orçado em 15 milhões de dólares, foi finalizado com o custo de 23 milhões, um valor que, mesmo com o aumento nas despesas, não se configurou algo tão exorbitante para um filme de ação e fantasia. Muito dessa economia se deu graças a alguns efeitos práticos usados na produção – a cidade projetada em miniatura para algumas tomadas, foi um desses recursos econômicos, por exemplo. E a diferença de 8 milhões de dólares foi trazida pela Miramax quando assumiu o projeto, para o complemento do mesmo.
A tragédia de Brandon Lee e mais outros vários acidentes ocorridos no set de filmagens, renderam à projeção a alcunha de “filme amaldiçoado” e, após mais de 1 ano de atraso, O Corvo teve seu lançamento em 13 de Maio de 1994. O êxito foi instantâneo e a obra se tornou um grande sucesso nos cinemas, arrecadando cerca de 94 milhões de dólares nas bilheterias, valor quase 4 vezes superior ao investido em sua produção. O autor James O’Barr decidiu não ficar com a sua parte dos direitos, doando seus lucros para uma instituição de caridade. E o filme que seria dedicado a Brandon, acabou fazendo uma homenagem a sua noiva também, terminando com a citação “Para Brandon e Eliza”. Nada mais justo, já que Eliza Hutton teve um papel preponderante para a sequência dos trabalhos. E assim como a HQ, a versão cinematográfica também teve sua aclamação e conquistou uma legião de fãs ao redor do mundo, se tornando um clássico do gênero.
Todos os elogios recebidos foram feitos por merecer, na medida que, The Crow conta com diversos fatores que merecem ser exaltados como, um ótimo roteiro, cheio de frases de efeito que, aqui jamais soam de forma piegas ou forçado; a excelente direção de Alex Proyas, deixando de ser apenas um cineasta promissor, se tornando uma realidade e que, soube com louvores criar um clima tenso e um ambiente sombrio, com cenas cheias de impacto, capazes de deixar os espectadores abalados e extasiados na mesma proporção. Outro trunfo da produção é sua empolgante trilha sonora, embalada por ótimos temas compostos pelo músico neozelandês Graeme Revell, além de ser recheada com muito Rock’n’Roll anos 90, com direito as canções de bandas renomadas, sendo elas, Nine Inch Nails, Stone Temple Pilots, The Cure, Rage Against The Machine, Pantera, Violent Femmes, entre outros. Ou seja, um filme que não só é um primor de se ver, mas também, bem agradável aos ouvidos.
Destaque também para o elenco de coadjuvantes formado por Ernie Hudson no papel do Sargento Albrecht, o policial local que acaba ajudando Eric Draven, mesmo espantado com a sua bizarra história de ter voltado do mundo dos mortos para tecer sua vingança; Michael Wincott como o chefe da máfia e vilão do filme, Top Dollar que, com seus homens trazem o caos à cidade; Tony Todd – famoso ator que obteve sucesso em outro grande sucesso da década de 1990, “O Mistério de Candyman”, também um clássico do terror – em O Corvo, Todd interpreta Grange, um dos capangas mais fiéis e de confiança de Top Dollar; e Rochelle Davis que dá vida à Sarah, uma adolescente negligenciada pela mãe e que vivia sob os cuidados de Eric e Shelly, até perdê-los naquela fatídica e trágica “Noite do Diabo”. A jovem atriz, em um brilhante desempenho, sem sombra de dúvidas é o maior dos destaques entre os papéis secundários, chegando a ser até injusto classificá-la como tal, devido à importância de sua personagem.
E claro, o ponto mais alto, marcante e digno de aplausos, o desempenho do saudoso e ótimo Brandon Lee. Sua atuação é no mínimo visceral e, provavelmente, nada do que foi o filme, seria possível sem o seu trabalho. Todas as cenas com Eric Draven, todas mesmo, sem exceção, são de um impacto inigualável, é sempre um baque vê-lo em ação e ficar na expectativa pelo o que ele tem a dizer ou qual atitude irá tomar. Lee conseguiu com louvores adentrar a fundo em seu personagem, passando por cima de toda a desconfiança que de início foi gerada em relação a sua capacidade, mostrando que era muito mais do que somente um expert em artes marciais, atuando com tamanha profundidade e peso dramático. Brandon sempre desejou ser mais reconhecido por seu talento em artes cênicas do que por suas habilidades na luta e, desde criança, se interessava por teatro, conciliando muito bem sua vida de treinos e atuações. Todo seu talento foi demonstrado em The Crow, o filme derradeiro de sua curta e trágica carreira.
Curiosidade: Enquanto rolavam as filmagens de O Corvo, Brandon já estava confirmado para estrelar o filme Mortal Kombat, de Paul Anderson, que foi lançado em 1995. Provavelmente, Lee iria interpretar o protagonista Liu Kang, personagem que acabou sendo vivido por Robin Shou.
Passados quase 30 anos do acidente que vitimou Brandon Lee – mais precisamente, após o dia 21 de outubro de 2021 – matérias sobre O Corvo voltaram a circular entre diversos meios de comunicação, infelizmente também por motivos trágicos, quando um disparo acidental efetuado pelo ator Alec Baldwin, no set onde estava sendo gravado o filme “Rust”, atingiu a diretora de fotografia Halyna Hutchins, que não resistiu ao ferimento e veio a óbito aos 42 anos de idade. O incidente que matou Halyna e deixou ferido o diretor do filme, Joel Souza, abalou a indústria cinematográfica e, novamente, levantou questionamentos sobre a utilização de armas cenográficas. É como disse Shannon Lee (irmã de Brandon) em suas redes sociais “ninguém deveria ser morto por uma arma em um set de filmagens”, mas tanto seu irmão, quanto Halyna Hutchins, tiveram suas jovens vidas interrompidas devido à acidentes bizarros que jamais deveriam acontecer.
É muito difícil desvencilhar O Corvo dessa aura de maldição que o cerca, devido a todos os incidentes ocorridos durante a sua concepção, mas apesar de todos os (trágicos) pesares, a obra de Alex Proyas é um filmaço que merece ser visto e revisto sempre que possível. Funcionando tanto para quem é fã da HQ da qual se deu sua origem, quanto para quem não a conhece. Funciona também para os amantes de filmes de suspense, ação, fantasia e drama, dispondo-se de uma ambientação incrível, passagens memoráveis e uma trilha sonora “bad ass”. E funciona, primordialmente, porque teve Brandon Lee em seu auge que, dentre todos os êxitos dessa grande obra, sua presença, sem dúvidas foi o maior acerto de todos.
Título: O Corvo (The Crow)
Direção: Alex Proyas
Ano de Lançamento: 1994
Gênero: Suspense/Ação/Fantasia/Drama
País de Origem: Estados Unidos
Duração: 102 minutos
Roteiro: David J.Schow/John Shirley/James O’Barr (quadrinista)
Elenco: Brandon Lee: Eric Draven
Rochelle Davis: Sarah
Ernie Hudson: Sargento Albrecht
Michael Wincott: Top Dollar
Michael Massee: Funboy
Sofia Shinas: Shelly Webster
Bai Ling: Myca
Anna Levine: Darla
Tony Todd: Grange
David Patrick Kelly – T-Bird