Os corpos negros se apresentam de maneiras distintas no universo não ficcional em que habitamos, no entanto, nas narrativas cinematográficas, existem repetições estéticas que passamos a compreender como estereótipos, que são massificadas e exaustivamente ampliadas, no intuito de apresentar negros de uma única maneira, e tal maneira não se parece em nada com a realidade que nos atravessa cotidianamente.
Aprecio de maneira categórica o trabalho de Will Smith, e quando assisti ao filme Hancock (2008) pela primeira vez, me encontrei no super-herói negro, que apresentava muitos poderes, dos quais os jovens desejam. No entanto, após uma série de leituras que envolviam outros heróis como por exemplo: Stuart Hall, Roberto Borges, Nilma Lino Gomes, Patricia Hill Collins, e uma série de expoentes que nos ensinam a entender nossas identidades, e de que maneira elas se situam nas políticas de raça, comecei a observar Hancock de outra forma, e notei que o filme apresenta uma confluência de estereótipos, ou seja, é possível compreender que o tal Super-Herói negro foi construído para dialogar com uma série de referências negativas sobre o corpo negro e suas atuações em sociedade. As questões apresentadas fazem o filme perder a potência? De maneira alguma, mas, como pesquisadores que somos, e evidencio PESQUISADORES NEGROS, precisamos propor inquéritos sobre o sistema de representação vigente, que não nos caracteriza, logo, de quais estereótipos estou falando?
1 – Problemas com Bebidas – Um super-herói (negro) que não consegue voar em linha reta, pois, está sempre embriagado. O estereótipo do “negro bêbado”, já invadiu nossas casas em muitas narrativas, talvez, o mais famoso entre os brasileiros seja o Mussum (os trapalhões), personagem fantástico, que, no entanto, estava sempre ancorado em uma garrafa, que chamava educadamente de “Mé”, uma referência ao mel, bem doce e gostoso.
2 – Não consegue controlar seus poderes – Hancock, segundo a narrativa, é um personagem que existe desde “o início dos tempos”, mas, ao assistir o filme, observamos que ele não consegue organizar seus dons, causando destruição por onde passa. Uma questão grave se apresenta, pois, o que aconteceria se um negro tivesse poderes? Ou seja, o descontrole, apresentado no filme, também é exaustivamente repetido quando se trata de personagens negros.
3 – Um sujeito sem passado – A questão da invisibilidade talvez seja o estereótipo mais utilizado desde os tempos da Blackface. Personagens negros costumam não saber sua origem, quem foram seus pais, avós, seus antepassados. No livro Negritude, Poderes e Heroísmos, 10 autores se reuniram para investigar o passado de super-heróis famosos, e propor outras narrativas, evidenciando a visibilidade, e construindo a ancestralidade dos personagens, no sentido de apresentar suas origens.
4 – Dificuldade de comunicação – Hancock não consegue falar direito com as pessoas, interagir, mesmo quando tem a oportunidade, não deseja dialogar. O silêncio, pauta que se repete nos suportes midiáticos, quando se tratam de questões raciais, é presente no filme, principalmente ao observarmos que os super-heróis (brancos), monopolizam a voz, falam em todo o tempo em suas histórias, coisas como por exemplo: “agora vou usar meu raio contra você”, ou “vou dar um soco super forte em você”, em uma série de narrativas, os super-heróis anunciam seus golpes, antes de executar… Mas, quando se trata de um super-herói negro, não há voz, apenas silêncios ensurdecedores.
5 – Romance com uma Loura – Narrativas em que negros possuem algum prestígio, seu par romântico é uma loura. Estereótipo clássico, que figura nos imaginários de maneira tão violenta, que, durante anos jogadores famosos (de diferentes esportes), repetem a postura de Hancock.
6 – Se apaixonar provoca efeitos colaterais – Qual o problema do corpo negro se apaixonar? Para os filmes, parecem ser muitos. Em Hancock, quando o personagem efetivamente se apaixona, ele enfraquece, podendo provocar sua morte e de sua parceira. Qual a opção que o filme apresenta: se afastar, e não viver o “verdadeiro amor”, como diriam os contos da Disney.
7 – Um homem branco ensina tudo que ele deve saber para virar herói – A jornada do herói (negro) é sempre complexa. Joseph Campbell propõe que todos os heróis passam por etapas iguais, mas, acho que Campbell, não estudou os heróis negros. Tratando-se de Hancock, seu mentor no filme, inclusive, o ensina a dizer aos policiais “bom trabalho”, ainda que ele (Hancock) salve o dia.
Hancock, filme que me inspirou em muitos sentidos quando assisti a primeira vez, ganhou uma série de outras referências, quando se tornou objeto de análise. Talvez, seja o momento de observarmos novamente narrativas que causaram impactos em nós… Afinal de contas, os heróis e heroínas de nossas histórias, somos nós…