Definitivamente para ser apreciado no volume máximo.
A ideia de O Último Concerto de Rock, em sua concepção, era de ser apenas um show de despedida da histórica banda de rock The Band, formada por Rick Danko, Robbie Robertson, Garth Hudson, Richard Manuel e Levon Helm. O conjunto que resolveu se aposentar dos palcos após 15 anos de estrada, decidiu dizer “adeus” a seu público organizando uma derradeira apresentação que seria realizada no dia Dia de Ação de Graças, em 25 de Novembro de 1976, na hoje extinta casa de shows Winterland Ballroom, em São Francisco – Califórnia. Mesmo não sendo uma arena com grande capacidade de lotação, a escolha foi de propósito devido ao valor sentimental da localidade, visto que, ali aconteceu a primeira apresentação ao vivo do grupo sob o nome The Band, por volta de 1969. E para filmar o evento, o cineasta Martin Scorsese foi escalado, e a partir daí as coisas começaram a ganhar proporções grandiosas.
Para celebrar essa chamada última valsa, os membros do The Band quiseram convidar alguns amigos que fizeram parte de suas vidas de turnês. A princípio a lista de convidados era pequena, fazendo parte desta, o músico Ronnie Hawkins, de quem no início da carreira o The Band serviu como banda de apoio sob o nome The Hawks, e o histórico Bob Dylan, com quem a banda também excursionou. Porém, essa vivência de shows e estradas fez com com que a banda cultivasse diversas amizades no universo musical e vários deles não poderiam ficar de fora da celebração, e assim a lista foi estendendo-se aos poucos. No final das contas, também marcaram presença no celebrado adeus, além de Hawkins e Dylan, os músicos Neil Young, Ronnie Wood, Ringo Starr, Muddy Waters, Yvonne Staples, Roebuck Staples, Mavis Staples, Stephen Stills, Cleotha Staples, Paul Butterfield, Bobby Charles, Eric Clapton, Dr. John, Neil Diamond, Emmylou Harris, Joni Mitchell, Van Morrison, Pinetop Perkins e Carl Radle, além do mestre de cerimônias Bill Graham, proprietário da casa de shows onde o evento estava sendo realizado, e os poetas Michael McClure e Lawrence Ferlinghetti.
Um evento desse porte, com tantas figuras icônicas, já seria grandioso por si só, mas Martin Scorsese viria para fazer da cerimônia algo monumental. Primeiro, o cineasta já chegou abrindo mão das câmeras básicas 16mm tradicionalmente utilizadas, substituindo-as por sete câmeras de 35mm e, para conduzir tal material cinematográfico, dispensou o uso de operadores de câmera e escalou diretores de fotografia renomados como, László Kovács do cultuado “on the road” Sem Destino (Easy Rider, 1969), Vilmos Zsigmond, do clássico ficção científica Contatos de Imediatos do Terceiro Grau (Close Encounters of Third Kind, 1977) de Steven Spielberg, e Michael Chapman de Taxi Driver de Scorsese. Continuando com suas ideias nada simplistas, Scorsese resolveu que The Last Waltz não seria apenas um show, e sim, um documentário, intercalando música ao vivo com entrevistas de membros do The Band, que no decorrer da projeção vão dando pinceladas sobre sua história desde os primórdios, compartilhando suas experiências, sempre com muito bom humor.
O cronograma do evento original, em sua íntegra, constituiu-se em um jantar servido ao público por volta das cinco horas da tarde, seguido por um baile dançante, ao som da Berkeley Promenade Orchestra. Com os motores aquecidos, a plateia viu a subida de seus ídolos ao palco por volta das nove horas da noite, já embalando um de seus maiores clássicos, Up on Cripple Creek, e o resto é história. Ao longo de mais de quatro horas de espetáculo, aqueles cinco companheiros de longa data, empolgaram e emocionaram os fãs reproduzindo seus grandes sucessos da carreira, à medida em que também, convocavam ao palco seus ilustres convidados. Figuras consagradas da indústria fonográfica, ícones culturais de valores inestimáveis, que se reuniram em uma noite de Ação de Graças para celebrarem a música e trajetória do The Band, em uma reunião de amigos que se tornou uma grande festa.
Diferente do que aconteceu naquela noite, o filme realizado por Scorsese passa longe de ter quatro horas de duração, e muito menos abrange todos os acontecimentos do evento, nem era essa a intenção. O Último Concerto extrai o que há de melhor na despedida da banda, momentos mais importantes, que vão se alternando com os entrevistados. De início, os integrantes do The Band são mostrados jogando sinuca, em seguida, o diretor dá um salto no tempo e mostra o grupo voltando ao palco para o “bis” já no encerramento do show, tocando a música “Don’t do It”. Dessa forma começam os créditos iniciais, ao som de “Theme from The Last Waltz” (composta por Robbie Robertson como tema do filme), onde a câmera segue pelas ruas da cidade dentro de um carro a caminho do local do evento, onde pessoas dançam ao som de valsa e, a partir desse ponto o set list segue em ordem cronológica, com paradas para entrevistas, que muitas vezes estavam interligadas a próxima canção ou convidado que estava por vir.
Entre as incursões feitas pelo cineasta com sua liberdade criativa, estavam os videoclipes feitos por ele das canções “The Weight” (que música perfeita, aliás), com a participação do grupo gospel/soul/blues/R&B, The Staples Singers e, “Evangeline” com vocais da cantora folk/country Emmylou Harris. Esses clipes foram realizados durante a pós-produção do documentário, e no corte final, substituíram suas respectivas versões ao vivo. Scorsese foi tão detalhista com seu trabalho, que chegou a fazer vários storyboards para cada canção, para assim definir a iluminação e ângulos a serem utilizados. Mesmo com tanto perfeccionismo, a produção acabou sofrendo com alguns reveses, devidos a problemas técnicos como, câmeras que falharam deixando de registrar alguns momentos e, brigas entre Scorsese e os diretores de fotografia, devido a tantas exigências do diretor, que parecia obcecado pela perfeição, e se empenhando ao máximo para tal.
Quando escalado para ser o condutor de The Last Waltz, Martin Scorsese já havia se tornado um cineasta de respeito e dos mais requisitados do cinema norte americano. Filmes como, Caminhos Perigosos (Mean Streets, 1972), Alice Não Mora Mais Aqui (Alice Doesn’t Live Here Anymore, 1974) e Taxi Driver (Idem, 1976), o alçaram como um dos principais integrantes da chamada Nova Hollywood, movimento de muita influência na década de 1970, onde dividia o protagonismo com jovens diretores de renome, sendo alguns deles, Steven Spielberg, Francis Ford Coppola, George Lucas, Brian de Palma, Peter Bogdanovich, Woody Allen, Michael Cimino, Arthur Penn, Monte Hellman, entre tantos outros. Apesar de na época estar envolvido no projeto New York, New York, filme musical com Liza Minnelli e Robert de Niro, o evento de despedida do The Band foi de fato seu primeiro trabalho envolvendo a música em uma obra não ficcional. Formato que ele ainda viria a revisitar por diversas vezes ao longo da carreira, com documentários sobre Bob Dylan, The Rolling Stones e George Harrison, por exemplo.
Relatos dos bastidores, confidenciados posteriormente pelo próprio Scorsese, dão conta de que durante as gravações, o uso excessivo de drogas era padrão entre os participantes, o diretor inclusive, chegou a admitir que na época estava viciado em cocaína. Foi nesse contexto também que Martin Scorsese e Robbie Robertson se tornaram grandes amigos. Posteriormente, Robertson e Scorsese chegaram a dividir um apartamento e seguiram trabalhando juntos, onde o guitarrista serviu como produtor musical de alguns sucessos do diretor como, Touro Indomável (Raging Bull, 1980), O Rei da Comédia (The King of Comedy, 1983), A Cor do Dinheiro (The Colour of Money, 1986), Casino (Idem, 1995), Gangues de Nova York (Gangs of New York, 2002), Os Infiltrados (The Departed, 2006), e O Irlândes (The Irishman, 2019). Aliás, foi dele a ideia de escalar Scorsese para conduzir a última valsa, após ver a utilização da trilha sonora pelo jovem cineasta em “Caminhos Perigosos”, filme produzido por Jonathan Taplin que, coincidentemente, era gerente e responsável pelas apresentações da banda. Além disso, anos antes, em 1970, Martin trabalhou também como editor no documentário sobre o lendário Woodstock.
Por motivos de envolvimento do diretor nas produções New York, New York e no documentário American Boy: A Profile of Steven Prince, The Last Waltz teve seu lançamento atrasado em quase dois anos, tendo sua estreia em 1978. O documentário foi aclamado pela crítica, recebendo elogios por quase todos cantos, sendo considerado até hoje, se não o melhor, um dos melhores registros do Rock da história. Não era para menos, somando a competência de Scorsese e sua dedicação à música, algo com que sempre o cineasta teve uma forte ligação, mais o talento do The Band e suas grandiosas canções e, com todos os ícones envolvidos, o resultado só poderia ser de fato, algo magistral. Mas nem tudo foram flores, por isso fiz questão de frisar que a aclamação veio de “quase” todos os lugares e, pessoas importantes inclusive, teceram fortes e duras críticas com a forma conduzida na abordagem de Scorsese sobre a banda.
A principal nota negativa é de que o filme teria dado ampla preferência a Robbie Robertson, que também produziu o longa, fazendo com que o mesmo fosse o protagonista. Crítica que realmente tem fundamento, pelo tempo de tela dedicado ao guitarrista. Os demais, por vezes, parecem coadjuvantes, com pequenos relatos, hora ou outra. O baterista/vocalista Levon Helm e o baixista/vocalista Rick Danko, aparecem bastante também, isso é fato, mas nem tanto quanto Robertson. O absurdo maior foram as participações do tecladista Garth Hudson e do pianista/vocalista Richard Manuel que acabaram sendo minúsculas. O mais ferrenho detrator da produção foi Levon Helm que nunca escondeu seu descontentamento, relatando o mesmo em seu livro autobiográfico This Wheel ‘s on Fire, lançado em 1993. O baterista ficou muito decepcionado com o documentário, pois nele dá a entender que Robbie Robertson seria o grande líder da banda, sendo o restante, membros de um grupo de apoio, rotulando até O Último Concerto de Rock como uma grande sacanagem na história do The Band.
Para quem conhece a história do quinteto, desde os primórdios, com o difícil início de carreira ainda no Canadá, de tempos em que os integrantes chegaram até a cometer pequenos furtos em supermercados para terem o que comer, até quando migraram aos Estados Unidos em busca de melhorias, e começaram a trabalhar como banda de apoio, sabe bem que o The Band sempre foi uma banda de todos. Muito longe de ter um líder, o protagonismo era dividido de igual pra igual, cada um com a sua importância, já falando de sua formação clássica. Tendo em Rick Danko, Levon Helm e Richard Manuel as figuras dos vocalistas, além de multi-instrumentistas, assim como, Garth Hudson, que também tocava vários instrumentos e, apesar de não cantar, era tido como o principal arquiteto da sonoridade do grupo, e Robbie Robertson que, a longo da carreira, foi vocal principal em apenas uma ou outra canção, mas figurava como o compositor mais ativo. Cada um na sua e todos se completando, essa era a síntese. A reação negativa à prioridade dada a Robertson realmente teve razão de existir.
Mas polêmicas à parte, e mesmo não sendo a despedida real da banda, visto que os integrantes voltariam a se reunir em 1983 (agora sem Robertson), se mantendo na ativa até 1999, O Último Concerto de Rock realmente é um documento histórico de valor imensurável. Com críticas cabíveis, é verdade, mas digno, muito digno de toda a aclamação que lhe é direcionada até hoje, seja por fãs do grupo ou de Scorsese, cinéfilos em geral, ou apreciadores do bom e velho Rock’n’Roll, estilo tão universal, imortal e agregador de multidões. E a sequência final do documentário, já com o The Band reunido com os participantes em cima do palco, comandados por ninguém menos do que o mestre e gênio incomparável Bob Dylan, reproduzindo a belíssima “I Shall be Released” (canção composta por Dylan e gravada pelo The Band), com todos os envolvidos entoando o refrão à uma só voz, sem sombra de dúvidas é um dos grandes momentos da história da música, para cantar junto, delirar e aplaudir de pé.
Épico é pouco!
Título: O Último Concerto de Rock (The Last Waltz)
Direção: Martin Scorsese
Ano: 1978
País: Estados Unidos
Duração: 117 minutos
Gênero: Documentário/Musical
Elenco: Robbie Robertson, Rick Danko, Levon Helm, Richard Manuel, Garth Hudson, Martin Scorsese, Bob Dylan, Neil Young, Van Morrison, The Staple Singers, Ronnie Hawkins, Ron Wood, Ringo Starr, Emmylou Harris, Neil Diamond, Muddy Waters, Eric Clapton, Bill Graham, Joni Mitchell.