“Você deve ter encontrado um dos espíritos da floresta.
Quer dizer que é uma garota de sorte.
Mas você só pode vê-los quando eles querem.”
O cinema, desde seus primórdios, lá pelo final do século XIX, quando os Irmãos Lumière munidos de seu cinematógrafo, começaram a reproduzir imagens simples (mas revolucionárias) como, os operários saindo de sua indústria ou um trem chegando à estação, sempre teve como principal função, mexer com os sentimentos de seus espectadores. De forma objetiva ou metafórica, a sétima arte é capaz de emocionar, entreter, divertir, assustar, nos tirar da realidade, levando-nos à um mundo de faz de conta, ou até mesmo chocar, expondo uma dura realidade, tirando da zona de conforto, trazendo reflexões, ensinando, expandindo culturas, abrindo mentes, mostrando-nos que existe um mundo que vai muito além de nossos umbigos, da nossa bolha de criação. Claro que, nem tudo é perfeito na indústria cinematográfica, muito longe disso, grande parte de sua história é suja e nefasta, capaz de enojar até o mais ferrenho cinéfilo, e nem estou falando somente de bastidores.
Mas o ponto que pretendo chegar, sem mais delongas, olhando somente para o lado bom e, ressaltando os dizeres acima sobre “mexer com os sentimentos”, talvez ninguém seja capaz de proporcionar esse tipo de situação, melhor que um estúdio japonês, criado em 1985 por Hayao Miyazaki, Isao Takahata, Toshio Suzuki e Yasuyoshi Tokuma, o aclamado Studio Ghibli Inc. Responsável por animes que encantaram o mundo ao longo dos anos, capazes de trazer à tona um turbilhão de sentidos em singelas produções, tão significativas, traduzindo assim, o cinema em sua essência. E três anos após sua fundação, este estúdio ganharia seu logotipo e mascote, a criatura conhecida como Totoro, personagem de um de seus filmes mais clássicos e icônicos.
Lançado em 1988, Meu Amigo Totoro (Tonari no Totoro) é uma clássica animação japonesa de fantasia/drama, escrita e dirigida por Hayao Miyazaki. O imediato sucesso conquistado mundo afora, tornando-se um fenômeno na cultura pop, fez com que o ocidente conhecesse o brilhante trabalho de seu diretor, como também de seu estúdio. Aclamado ao redor do globo, Totoro acabou encantando gerações de crianças e adultos, pela sua magia, beleza e simplicidade, ganhando uma significativa notoriedade, em uma época onde o cenário de animações era amplamente dominado pelos estúdios Disney.
Ambientado na zona rural de um Japão pós guerra, Meu Amigo Totoro traz a história da família Kusakabe, formada pelo pai, Tatsuo e, suas duas filhas, Satsuki, de onze anos de idade e Mei, com apenas quatro anos. Esses três indivíduos mudam-se para o interior a fim de ficarem mais próximos do hospital onde a mãe da família, Yasuko, vinha se tratando de uma doença, que a mantinha sob cuidados médicos já há algum tempo. Ao chegarem na nova casa, as irmãs já percebem que aquela moradia era assombrada, mas isso não seria nenhum problema, visto que, os espíritos que ali habitavam eram bons, apenas protegiam o lugar. Um belo dia, quando Mei brincava próxima à floresta, avista uma pequena e diferente criatura, que tenta fugir da garota, mas é seguido. Nessa perseguição, a menina acaba caindo em um buraco que ficava aos pés de uma grande árvore (fazendo referência à Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll). A queda de Mei foi amortecida por uma gigante criatura adormecida, este era Totoro, um espírito da floresta, um monstro simpático, extremamente carismático e, absurdamente fofo, com a aparência sendo uma mescla da raposa japonesa, uma coruja e um gato. A partir daí, somos convidados a embarcar em um lindo mundo de fantasia, criado por Hayao Miyazaki, e convenhamos, convite irrecusável.
O animador, roteirista, escritor, diretor e artista de mangá, Hayao Miyazaki, nasceu em Tóquio, no dia 05 de janeiro de 1941, e desde cedo se interessou por artes, animação e mangá. Após estudar na Universidade Gakushuin, foi contratado, em 1963, pela Toei Animation, um estúdio de animação japonês, componente da Toei Company, e foi nessa época que conheceu o seu futuro sócio e amigo Isao Takahata, com quem colaborou em alguns trabalhos. Durante um período de aproximadamente quinze anos trabalhando como animador, e dirigindo algumas séries, Miyazaki estreou nos cinemas em 1979, com O Castelo Cagliostro (Rupan Sansei: Kariosutoro no Shiro). Apesar de ter obtido uma bilheteria fraca, sua debutante obra recebeu elogios da crítica especializada, e após os bem sucedidos projetos posteriores de seu realizador, foi recebendo o merecido reconhecimento de forma tardia, enxergando-se em seu filme de estreia, influências e traços que se fariam presentes em sua filmografia.
E por falar em traços e características fílmicas desse grande mestre japonês, sempre foram temas recorrentes em seus trabalhos, a relação do ser humano com a natureza, agindo em defesa ao ecologismo, amor, família, pacifismo e, se opondo ao militarismo, criticando o mundo capitalista, a globalização e à alienação que estes podem causar à humanidade. Miyazaki também é considerado por muitos como um feminista, devido à forma que ele retratava as mulheres em suas animações e a importância da presença e a força feminina em suas obras, sempre corajosas, determinadas, autossuficientes, sendo as heroínas de suas próprias histórias, e não apenas donzelas necessitantes de um salvador.
Em 1984, Miyazaki lançou seu segundo longa metragem, Nausicaa do Vale do Vento (Kaze no Tani no Naushika), uma obra grandiosa (para alguns, sua obra máxima) que conquistou um considerável sucesso. O êxito alcançado veio a ser o principal responsável pela criação do Estúdio Ghibli, o Reino de Sonhos e Loucura. O primeiro filme com o selo Ghibli, O Castelo no Céu (Tenkū no Shiro Rapyuta), sob a batuta de Miyazaki, foi lançado em 1986 e virou mais um sucesso de crítica e público, conquistando o prêmio Anime Grand Prix, da revista japonesa Animage. E o próximo lançamento do estúdio viria a ser Meu Amigo Totoro que, de início não contava com a confiança de seus investidores, que não acreditavam no sucesso do filme. Sendo assim, resolveram lançá-lo em conjunto com Túmulo dos Vagalumes (Hotaru no Haka), dirigido por Isao Takahata, e ambos foram um grande sucesso, aclamados pela crítica.
Além de todas as características citadas como atributos de Miyazaki, outra que se faz notória, não só do cineasta, mas também de seu estúdio, é a capacidade de lidar com temas de extrema complexidade “disfarçado” de uma história mágica e fantástica e, em Tonari no Totoro a situação não é diferente. Temas como solidão, amizade, infância e amadurecimento são expostos através de duas irmãs e seu anseio pela recuperação de sua mãe. Mei, a mais jovem, demonstra mais tristeza e incômodo com a ausência materna, não que Satsuki não sentisse pesar com a situação, pelo contrário, a irmã mais velha tinha a verdadeira noção da enfermidade de sua matriarca, mas seus sentimentos eram reprimidos por um bem maior, ela precisava ser forte para dar todo o apoio necessário à sua irmã caçula e frágil. O pai, Tatsuo, apresentava-se como um figura presente e protetora, mas a amizade e cumplicidade entre as irmãs era algo único e belo, só uma compreendia a outra, ambas sabiam do convívio com a angústia causada por não terem a presença da mãe naquela altura de suas vidas.
O cenário bucólico da nova residência traz alegria às jovens, Satsuki e Mei encontram diversão em meio à agonia. As belas paisagens, as plantações de arroz, a floresta, rios, tudo muito colorido, limpo, o ar puro, a mudança renova o ânimo da angustiada família, afinal de contas, além da beleza do local, ele também deixava todos mais próximos da mãe e esposa. E ainda tem Totoro, o monstro amigo que é a válvula de escape, a fuga da realidade, é dar asas à imaginação ilimitada das crianças. Em seu mundo tudo é perfeito, não tem tristeza, tem felicidade nas pequenas coisas, em meros detalhes, tem o culto à natureza e à amizade. E como se não bastasse, o meio de transporte do novo companheiro, é um ônibus-gato! Isso mesmo, Totoro tem um ônibus que é um gato gigante, e os faróis são seus olhos. A projeção em nenhum momento explica se, os espíritos da floresta e seu líder, são reais ou fruto da imaginação de duas irmãs sofridas em busca de um escapismo. Mas isso vai do imaginário e capacidade de interpretação de cada um, o importante é o deleite por vivenciar as aventuras de Totoro, Satsuki e Mei.
Com Meu Amigo Totoro, Miyazaki abriu mão de aventuras grandiosas e mirabolantes, outrora utilizadas em seus primeiros filmes, pela simplicidade, imagens rupestres, ambiente calmo e pacífico. O vilarejo com pessoas acolhedoras, tratando a amizade como o bem mais importante, trabalhando por um bem maior, pontuando o sentido de comunidade e, claro, enaltecendo a cultura de seu país, assim como, seu folclore e crenças locais. Mas creio que o que faz desse filme algo tão tocante, com um diretor inspiradíssimo, alcançando o auge, é o fato de ser uma obra deveras pessoal de seu realizador, em virtude de sua mãe, Dola Miyazaki, ter sofrido de tuberculose espinhal, entre 1947 e 1955. E nos primeiros anos de tratamento, sua genitora teve que se tratar em um hospital, sendo afastada da família, ou seja, o pequeno Hayao, com apenas seis anos de idade na época, sentiu na pele toda dor e angústia atribuídas às suas jovens protagonistas, Satsuki e Mei.
Inicialmente, na ideia original do roteiro, haveria apenas uma protagonista, mas ao final, ficou resolvido que seriam duas irmãs, o que acabou sendo um grande acerto, pois o ponto mais emocionante da obra é a relação entre elas. E como já costumeiro, a animação é fascinante, com uma ambientação rural atenta à cada detalhe, tão marcante, que chega a transmitir uma sensação de paz só de ver. Méritos do minucioso trabalho Hayao e do diretor de arte, Kazuo Oga, em sua primeira colaboração com o Studio Ghibli. A trilha sonora composta por Joe Hisaishi, frequente colaborador do cineasta, também é um primor, com músicas não tão épicas, ou grandiosas, como em outras de suas trilhas, mas com uma doce beleza, condizente com toda a ambientação envolvida e, por vezes frenética pontuando as aventuras vivenciadas.
O êxito atingido por Totoro, o credenciou a se tornar uma figura popular, estampando produtos comerciáveis, como bonecos, camisetas, canecas, entre outros e, fazendo parte de easter eggs em algumas produções como, Toy Story 3, South Park, Bob Esponja. Entretanto, essa nunca foi a intenção do Studio Ghibli, que jamais flertou com o comercialismo e sempre teve como principal intuito, educar, entreter, divertir, emocionar e transmitir suas mensagens à jovens e adultos. E o desenvolvimento de suas animações sempre recorreram à uma forma artesanal de produção, com um jeito mais natural e orgânico, sem se utilizar de alta tecnologia, seja lidando com histórias simples ou fantásticas. Todavia, a qualidade de seus projetos eram tão visíveis que, obviamente, se popularizaram cada vez mais, conquistando o mundo ocidental, servindo de inspiração para outros animadores como, por exemplo, John Lasseter, diretor criativo da Pixar Animation Studio, que tem Hayao Miyazaki como seu grande mestre.
Esse sucesso, abriu as portas para Hayao Miyazaki, que seguiu presenteando seus fãs, como de praxe, com obras altamente recomendáveis e encantadoras, entre elas, O Serviço de Entregas da Kiki (Majo no Takkyûbin, 1989), Porco Rosso – O Último Herói Romântico (Kurenai no Buta, 1992), Princesa Mononoke (Mononoke-hime, 1997), o premiadíssimo A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi, 2001), vencedor do Oscar de Melhor Filme de Animação e seu maior sucesso mundial, O Castelo Animado (Hauru no Ugoku Shiro, 2004), Ponyo – Uma Amizade que veio do Mar (Gake no Ue no Ponyo, 2008) e Vidas ao Vento (Kaze Tachinu, 2013). Acabei por listar todos os longas subsequentes porque todos valem a pena, sem exceção. Isso sem contar os curta metragens e trabalhos realizados por outros cineastas com o selo Ghibli de qualidade.
Em suma, Meu Amigo Totoro é um filme para a vida toda, que encanta tanto crianças, por sua magia e diversão, quanto adultos, por seu verdadeiro conteúdo repleto de profundidade. Sinto um certo pesar por não ter sido exposto à essa obra de arte quando jovem, contudo, não houve qualquer empecilho que me impedisse de embarcar nesse mundo de fantasia apaixonante, mesmo com a juventude já ficando para trás, impossível conter a empolgação. Há quem diga que a projeção tem alguns erros de continuidade, todavia, recuso-me veementemente a tecer qualquer comentário sobre este assunto, nada ali é falho, Totoro é perfeito, Totoro é um verdadeiro sonho.
Informações Técnicas.
Meu Amigo Totoro (Tonari no Totoro)
Direção: Hayao Miyazaki
Ano: 1988
País: Japão
Duração: 86 minutos.
Elenco:
Noriko Hidaka: Satsuki (voz)
Chika Sakamoto: Mei (voz)
Shigesato Itoi: Tatsuo Kusakabe (voz)
Sumi Shimamoto: Yasuko Kusakabe (voz)
Tanie Kitabayashi: Kanta no obâsan (voz)
Hitoshi Takagi: Totoro (voz)
Yûko Maruyama: Kanta no okâsan (voz)
Machiko Washio: Professor (voz)
Naoki Tatsuta: Ônibus-Gato / Outros (voz)
Shigeru Chiba: Kusakari-Otoko (voz)
Yûko Mizutani: Tratorista (voz)
Ikue Ohtani: Vozes adicionais (voz)