“Talvez vamos encontrar um lugar melhor do que todos, como não havemos de ser gente um dia? Gente que dorme em cama de couro. Por que havemos de ser sempre desgraçados? Fugindo no mato que nem bicho?”
Dirigido por Nelson Pereira dos Santos e baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos, Vidas Secas é uma obra prima do nosso cinema, sendo um dos filmes nacionais mais importantes de todos os tempos. Figurando entre os principais expoentes do chamado Cinema Novo, movimento cinematográfico brasileiro dos mais relevantes da história da sétima arte no Brasil.
Em sua trama bem conhecida, acompanhamos a trajetória de uma família de retirantes nordestinos formada por Fabiano (Átila Iório), sua esposa Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), seus dois filhos pequenos, um papagaio e a icônica cachorra Baleia. Esses pobres indivíduos vagueiam pelo sertão do Nordeste, fugindo da seca que assola a região, em busca de um pedaço de terra produtiva onde possam ter ao menos uma condição digna de vida.
O escritor Graciliano Ramos, nascido em 27 de outubro de 1892, na cidade de Quebrangulo, no estado de Alagoas, fez parte da Segunda Geração do Modernismo no Brasil, e assim como alguns de seus companheiros de ofício como, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e José Américo de Almeida, trouxe em suas obras os problemas enfrentados pelo Nordeste e seu povo sofrido. Sendo sempre envolvido com política e militante comunista, Graciliano foi preso por esse motivo, em março de 1936, ficando encarcerado durante onze meses. Foi nesse período que veio a inspiração para escrever suas principais obras, e ainda no mesmo ano, publicou o seu terceiro romance Angústia (os dois primeiros haviam sido Caetés, de 1933 e São Bernardo, de 1934), e em seguida, o texto Baleia, e foi através desse trabalho que se deu origem ao seu livro Vidas Secas, publicado em 1938, o qual é considerado o seu Magnum Opus (obra máxima) e um marco histórico para a literatura brasileira. Traz consigo uma forte crítica social (algo típico de seu autor), denunciando a pobreza no sertão, a desigualdade, e a vida sofrida de muitos trabalhadores daquele lugar, mostrando as diferenças e como aquela região estaria desarticulada do restante do país. Figurando entre os principais autores da nossa literatura, Graciliano Ramos é detentor de obras riquíssimas e de extrema relevância (várias dessas publicadas de maneira póstuma), e manteve-se ativo tanto na escrita, quanto em seu ativismo político, até sua morte em 20 de Março de 1953, aos sessenta anos de idade, vítima de um câncer do pulmão.
Ainda na década de 1950, em um tempo predecessor à morte do romancista alagoano, discutia-se através de congressos de cineastas, novas ideias para o cinema nacional. Em uma época em que o cinema brasileiro era regado por chanchadas, comédias, musicais e épicos de grande orçamento, com influências hollywoodianas, os novos ideais em pauta tendiam a romper com essas tendências, trazendo um cinema mais realista, enaltecendo nossa cultura, pontuando problemas sociais e políticos, em um estilo que remeteria diretamente ao Neo Realismo italiano e Nouvelle Vague francesa. E desses manifestos surgiria o embrião do movimento que ficaria conhecido como o já citado Cinema Novo, e com ele se lançariam alguns diretores de destaque na história do cinema tupiniquim como, Glauber Rocha, Cacá Diegues, Roberto Santos, Helena Solberg (única diretora participante do movimento) e Nelson Pereira dos Santos. As primeiras sementes deste novo movimento foram plantadas por Alex Viany com o filme Agulha no Palheiro (1953) e por Nelson Pereira dos Santos com o seu Rio, 40 Graus (1955), ambos filmes de baixo orçamento. O filme de Nelson foi um grande sucesso, e mostrava o povo em sua realidade, filmado em locações, lugares naturais e populares no Rio de Janeiro. Mas o Cinema Novo só viria a se consolidar de forma efetiva a partir da década seguinte, se tornando cada vez mais político, se popularizando cada vez mais, obtendo o apoio de presidentes progressistas como Juscelino Kubitschek e posteriormente, João Goulart, que foram grandes influenciadores da cultura brasileira. E foi nesse contexto histórico que seria rodado Vidas Secas, que além da já mencionada direção de Nelson Pereira dos Santos, que também desempenhou o papel de roteirista, ainda conta com a produção de Herbert Richers e Luiz Carlos Barreto (que também assina a direção de fotografia).
No intuito de ser o mais fiel possível à obra literária, Nelson Pereira dos Santos e sua equipe rumaram ao sertão nordestino, porém a primeira tentativa de rodar Vidas Secas acabou indo literalmente por água abaixo, pois a região foi acometida por fortes chuvas, tirando todo o ambiente de aridez que deveria ser retratado. Sendo assim, Nelson e os demais, improvisaram e produziram no local o filme Mandacaru Vermelho, protagonizado pelo próprio diretor e lançado em 1961. Passado um tempo, os envolvidos voltaram ao Nordeste e escolheram como local de filmagens duas cidades do estado de Alagoas, Minador do Negrão e Palmeira dos Índios (curioso que, Graciliano Ramos passou uma parte de sua vida em Palmeira dos Índios, inclusive se elegendo a prefeito do município em 1927). Outro objetivo do cineasta era filmar tudo em um tom quase documental, obviamente influenciado pelo neo realismo, e se utilizando de um elenco pouco conhecido ou totalmente anônimo.
Átila Iório tinha uma experiência de mais de quinze anos nas telonas, mas conseguiu notoriedade após desempenhar o protagonista Fabiano, chefe da família, e após isso, teve uma carreira bem sucedida, tanto no cinema, quanto no teatro e televisão. O filme serviu também para alavancar a carreira de Jofre Soares, escalado para dar vida ao fazendeiro e patrão da família. Jofre estreou no cinema naquele momento, com mais de quarenta anos de idade, e daí em diante, se tornaria um dos maiores atores brasileiros da sétima arte. Mas a história mais interessante ficaria por conta de Maria Ribeiro, intérprete de Sinhá Vitória, que nunca havia havia trabalhado no ofício de atriz, sequer tinha qualquer experiência com artes cênicas.
Maria Ribeiro contou que trabalhava em um laboratório, onde Nelson Pereira e outros diretores do Cinema Novo revelavam os negativos de seus filmes, e ela tinha uma certa amizade com o diretor, a quem definia como “homem simples e humilde”. A sua escalação para o filme foi totalmente inusitada, deixando-a surpresa e também cheia de dúvidas, visto que, se sua carreira no cinema não decolasse, ela perderia um emprego fixo no laboratório. Além disso, houve a recusa de seu patrão, que tentou de todas as formas impedir que ela aceitasse o papel, desencorajando-a, aconselhando a moça a não se envolver com cinema e não assegurando seu emprego quando terminasse a produção. Nelson começou a fazer pressão, inclusive vazando essa informação para a imprensa, que começou a publicar matérias sobre “o patrão que não deixava a funcionária ser atriz”. E como último recurso, o cineasta acionou o produtor Herbert Richers para intervir e finalmente convencer o patrão de Maria a liberá-la. Após o sucesso do filme, Maria Ribeiro nunca mais voltou ao seu antigo trabalho.
Entre a publicação do livro de Graciliano Ramos, em 1938, até a produção do filme, pouco mais de vinte anos depois, o cenário do sertão nordestino em nada mudara, e o que se vê reproduzido em tela é exatamente o retrato relatado pelo romancista. Nelson Pereira dos Santos é impiedoso em sua condução da obra, em uma filmagem bem documentarista, como se reproduzisse cenas reais, e através da lente de Luiz Carlos Barreto, com uma fotografia crua, sem filtros, sem luz artificial, dando o tom mais realista possível, Barreto dizia que “Era preciso sentir o calor olhando para a fotografia do filme”. Com poucos diálogos, tudo é levado através de imagens e do som do carro de boi – que pontua algumas passagens, na ausência de trilha sonora – do ambiente hostil, do clima árido, onde nada se cultivava, e o gado morria de sede, em um mundo sem esperança, mostrado através dos olhos da família miserável e seu calvário. Fabiano, homem simplório, analfabeto, que só queria uma terra, onde pudesse tocar uma pequena boiada para tirar seu sustento e de seus dependentes, e ainda tinha que lidar com a exploração do patrão e o autoritarismo de comandantes locais. Sinhá Vitória, mulher batalhadora e mais instruída que seu esposo, fazia contas de quanto precisaria para comprar uma cama de couro, podendo repousar finalmente em conforto e sair daquela “vida de bicho”, como ela mesmo dizia, e daquele lugar que ela comparava ao inferno. Os dois filhos pequenos, que pouco fazem, parecem não entender o que acontece, somente acompanham seus pais na eterna caminhada, tendo um apego à Baleia, a cadela de estimação.
Baleia é uma das figuras centrais da trama. Sempre fiel, seguia e guiava seus donos, servia de distração às crianças, e como uma grande caçadora, muitas vezes trazia alimento para sua família, e recebia migalhas em troca, fazia muito e se contentava com pouco. E é justamente esse pobre animal que protagoniza uma das cenas mais tristes da história do cinema brasileiro, aliás, é impossível falar sobre Vidas Secas e não citar essa passagem, que mostra a pobre cachorra adoecida e fatalmente, tendo que ser sacrificada por seu dono. Diante de toda a tristeza jogada sem piedade em nossas caras, a morte da leal Baleia vem para perpetuar a obra, sacramentando toda a desgraça que cercava a vida daquele pobre povo, onde a alegria era praticamente nula, e a tristeza era como a seca, parecia não ter fim.
Vidas Secas estreou no dia 22 de Agosto de 1963, e foi amplamente aplaudido pelo público e crítica. A imprensa o comparava a Ladrões de Bicicleta, clássico do neo realismo italiano, dirigido por Vittorio De Sica, e diziam que nascia ali a linguagem do cinema brasileiro, sendo o melhor filme nacional já feito. E no ano seguinte foi apresentado no Festival de Cannes, causando um grande impacto, chocando seus telespectadores, que ficaram admirados com a qualidade da obra, e claro, perplexos com a realidade retratada. Enquanto a maioria dos europeus aplaudia e reverenciava o êxito de Nelson Pereira dos Santos, uma condessa italiana chamada Mia Acquarone, ficou horrorizada e abandonou a exibição do filme, alegando que os brasileiros tinham matado de verdade a cachorra durante as filmagens. E sua indignação não parou por aí, Mia que era ligada a entidades de defesa dos animais, acionou as autoridades e a imprensa e causou um grande alvoroço, tentando tomar providências legais e promovendo um boicote ao filme.
A cadela que, lógico, estava bem viva, e muito bem cuidada após ter sido adotada por Luiz Carlos Barreto e sua esposa Lucy Barreto, precisou ser levada até à França para comprovar que não tinha sido morta. Para isso, foi montada uma mega operação para o seu transporte até à Europa, e sua dona preparou um enxoval especial para a cadela, afinal de contas, ela estava indo participar de Cannes. Chegando em solo francês, ainda no aeroporto, o animal foi recepcionado pela imprensa que cobria o festival, em meio a tumulto e flashes, Baleia chegou no velho continente com status de estrela do cinema, e desfilou pelo Festival de Cannes como tal. Mas mesmo assim, a condessa não se deu por satisfeita, dizendo que “vira lata é tudo igual, mataram aquela e trouxeram outra”. Porém, mesmo com toda a polêmica, nada afetou o desempenho do brilhante trabalho de Nelson e cia.
Fato inusitado: Nelson Pereira dos Santos encontrou a cadela, que na verdade se chamava Piaba, dormindo na sombra de uma barraca na feira. O dono do estabelecimento disse que o animal era dele, e colocou um preço para venda, impondo uma condição, que seu sobrinho teria que viajar junto com a equipe do filme, porque a cachorra só obedecia ao menino, Nelson aceitou os termos e pagou pelo animal. Chegando ao Nordeste, o jovem revelou-lhe que a cachorra, na verdade, não pertencia ao feirante, ela não tinha dono, apenas estava no local descansando e se escondendo do sol, e tampouco o garoto era sobrinho do vendedor. Ou seja, Piaba, de cachorra de rua, partiu para o estrelato. E pelo que se sabe, ela morreu dez anos depois das filmagens, vivendo até o fim da vida com Lucy Barreto e Luiz Carlos.
Os ocorridos inusitados e até engraçados de bastidores e lançamento do filme, configuram um contraste com toda a tristeza demonstrada em tela. Uma obra que relata, expõe e denuncia uma realidade de muitos, a miséria, a desigualdade social, a péssima condição do trabalhador rural, exploração, autoritarismo, a seca e suas consequências, tudo isso mostrado de forma visceral, vai direto na carne, dói na alma de se testemunhar. Traçando um paralelo histórico, nessa época em nosso país, além das denúncias inseridas no Cinema Novo e em outros manifestos, também existia uma discussão séria sobre reforma agrária e movimentos como as Ligas dos Camponeses no Nordeste lutavam pelos direitos dos trabalhadores rurais e por melhorias da vida no campo, entrando em atrito com autoridades locais, militares e latifundiários, mas detendo o apoio do governo federal, e já se estendia para outros estados fora da região nordestina. As ligam foram reprimidas e desmanteladas com a deposição do presidente João Goulart e, consequentemente, o início da Ditadura Militar em 1964. E se, de 1938 à 1963, os problemas sociais em nada mudaram, dos anos sessenta até tempos atuais, a realidade no século XXI é tão diferente? Acho que a resposta é muito clara, infelizmente.
Essa obra de arte do cinema brazuca, juntamente com Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha, e Os Fuzis (1964) de Ruy Guerra, formam a chamada trilogia de ouro do Cinema Novo, e trouxe a Nelson Pereira dos Santos, que desde a década de cinquenta já se mostrava um diretor diferenciado em seus primeiros trabalhos, a merecida consagração, se consolidando como um dos maiores cineastas brasileiros de todos os tempos. Sem sombra de dúvidas, o principal adaptador de obras literárias para o cinema, responsável por transpor para as telonas, além de Graciliano Ramos, também Jorge Amado, Machado de Assis, entre outros, sempre com a habitual competência.
Vidas Secas escancara a triste realidade de uma sociedade desigual, que por muitas vezes é abafada, ignorada, deixada de lado, e que sérias medidas precisam ser tomadas para que se mude esse cenário, com urgência, sempre valendo aquela velha máxima “Quem tem fome tem pressa”. Mas não só isso, o trabalho de Nelson e equipe também explicita a não tão reconhecida e pouco valorizada, qualidade do cinema nacional, e como se tem profissionais competentes por aqui, capazes de desenvolverem obras que transcendem o tempo, sobrevivem aos anos, sem perder a força, sempre aberta a reflexões ainda tão atuais.
Informações Técnicas.
Vidas Secas
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Ano: 1963
Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, Graciliano Ramos (romance)
Duração: 103 minutos
Elenco: Átila Iório, Maria Ribeiro, Jofre Soares, Orlando Macedo, Gilvan Lima, Genivaldo Lima
Sinopse: Uma família miserável tenta escapar da seca no sertão nordestino. Fabiano (Átila Iório), Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), seus dois filhos e a cachorra Baleia vagam sem destino e já quase sem esperanças pelos confins do interior, sobrevivendo às forças da natureza e à crueldade dos homens. Adaptação da obra de Graciliano Ramos.