“Queriam matar-lhe a alma, mas só lhe mataram o corpo!”
Em 1945, com o término da Segunda Guerra Mundial, a Itália, assim como toda a Europa, encontrava-se devastada, o povo sofria sem emprego, sem comida e moradia. Através desse cenário caótico, alguns cineastas locais viram a necessidade de expor a dura realidade de seu país, se contrapondo ao modelo de cinema que esteve em vigência em solo italiano, durante o período fascista (1922 – 1945). Na ditadura de Benito Mussolini, as produções tendiam (eram obrigadas) a ser otimistas, moralistas, positivistas, para exportar ao mundo uma versão irreal do que acontecia, com o intuito de legitimar o regime totalitário. Com a nova realidade e a derrota do fascismo, todos puderam conhecer, finalmente, a situação precária daquele povo sofrido. Esse novo estilo cinematográfico ficaria conhecido como Neo-realismo italiano, e suas principais características eram contar histórias da classe trabalhadora, mostrando a opressão e desigualdade social, abrindo mão de estúdios e filmando em locações, nas ruas, com luz natural e geralmente utilizando, junto com atores e atrizes profissionais, pessoas simples, pertencentes a população que viviam àquela realidade, em um tom quase documental. E desse movimento, surgiram grandes obras que viriam a revolucionar e ditar uma nova maneira de se fazer cinema.
Anteriormente, em 1943, o lendário diretor Luchino Visconti realizou seu filme estreia, Obsessão (Ossessione), e nele já se encontrava traços do que viria a ser a base do movimento neo-realista, porém, a película chocou tanto que foi proibida pelos censores, ficando engavetada por um tempo. Assim, costuma-se dizer que a obra realizada por Roberto Rossellini, dois anos mais tarde, intitulada Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta), foco central desse texto, veio a ser o pontapé inicial do neo-realismo italiano.
A obra de Rossellini narra a história de um período onde, a partir de agosto de 1943, Roma foi decretada como uma cidade aberta, e os nazistas marchavam pelo território, buscando por inimigos do nazi fascismo. Membros contrários a esse regime, tidos como a Resistência, eram formados por grupos comunistas que se aliaram a integrantes e líderes da Igreja Católica. Nesse ambiente tenebroso, o povo sofria com racionamento de comida, toque de recolher rigoroso e as investigações dos soldados de Hitler, e essa perseguição era feita com métodos totalmente desumanos, algo típico do nazismo. E assim, somos apresentados a Pina (Anna Magnani), uma mulher forte, viúva, que vive em um cortiço com seu filho Marcello (Vito Annichiarico), e prestes a se casar com seu vizinho Francesco (Francesco Grandjacquet). Certo dia, ela recebe a visita de um desconhecido, Giorgio Manfredi (Marcello Pagliero), que está ali à procura de seu futuro esposo. Os dois fazem parte da Resistência, assim como o padre da paróquia local, Don Pietro Pellegrini (Aldo Fabrizi).
Manfredi, que era um dos líderes da Resistência, fora descoberto pelos nazistas e vinha sendo perseguido pela Gestapo, precisando da ajuda de seus aliados para sua iminente fuga da cidade. Enquanto os soldados estavam em sua busca, batiam de porta em porta, causando terror por onde passavam. Detiam pessoas suspeitas, levando-as até seu superior, o Major Bergmann (Harry Feist) para interrogatório e tortura. O comandante era um homem frio e calculista, e em seu posto de comando existia um contraste entre duas salas, em uma, pessoas eram torturadas, e enquanto gritavam de desespero e dor, no cômodo ao lado, pessoas bebiam, jogavam cartas e se divertiam. E nessa opressão, seguia a perseguição aos opositores, enquanto o povo vivia em decadência, reféns da barbárie.
Roma, Cidade Aberta foi filmado enquanto a guerra acontecia, e seus horrores ainda eram vistos por todos os cantos, então, as gravações ocorreram de forma clandestina. Rossellini filmou tudo pelas ruas da capital, trabalhando em locações e usando pessoas simples, pertencentes ao povo ao qual o filme representava, poucos ali eram atores profissionais, que é o caso de Anna Magnani. Membros reais da Resistência participaram da película fazendo figuração, e tudo tinha um tom de documentário, mostrado da forma mais real possível. A obra ainda contou com uma ótima fotografia de Ubaldo Arata e o roteiro do próprio diretor em parceria com Sergio Amidei, Alberto Consiglio, Suso Cecchi D’Amico e Federico Fellini (que posteriormente, viria a se tornar um dos maiores cineastas italianos de todos os tempos).
Em seu lançamento, a recepção por parte do público foi totalmente “morna”, com uma arrecadação medíocre. Dizia-se que a Itália precisava de uma fuga dos horrores da guerra naquele momento, e Rossellini tocou na ferida muito cedo. Porém, quando o filme rodou o mundo, a crítica especializada foi reconhecendo o seu valor e importância, começando a receber sua devida atenção, e consequentemente, sua merecida valorização. Saiu vencedor do Prêmio Grand Prix no Festival de Cannes em 1946, e indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado no mesmo ano. Após isso, Roberto Rossellini ainda rodou duas obras sobre os mesmos temas, Paisà, realizado em 1946, e Alemanha, Ano Zero (Germania anno zero, 1948), fechando assim, sua trilogia da guerra ou trilogia neo-realista. E a partir dai, outros grandes diretores embarcaram nesse novo movimento cinematográfico, como o já citado Luchino Visconti, e também, o italiano Vitorio DeSica, que talvez tenha dirigido o trabalho mais marcante desse período, o comovente Ladrões de Bicicletas (Ladri di Biciclette, 1948).
O movimento neo-realista entrou em declínio nos anos 1950, muito em função de a economia italiana estar se estabilizando, e a realidade de muitos (não de todos) estar mudando. Diretores que participaram daquele período, agora optavam por outros temas, deixando de lado o tom realista daquela época. Mas sua importância continua tendo destaque e seu devido lugar na história da sétima arte, e sendo influência para diversos diretores. E Roma, Cidade Aberta, não só funciona como cinema, mas também como um registro histórico de um tempo assombroso ao qual a humanidade foi submetida, e um alerta para que essa atrocidade jamais aconteça novamente.
Informações técnicas.
Roma, Cidade Aberta (Roma, città aperta)
País: Itália.
Ano: 1945
Gênero: Drama – Histórico
Direção: Roberto Rossellini
Roteiro: Federico Fellini, Ubaldo Arata, Roberto Rossellini e Sergio Amidei.
Duração: 103 minutos
Elenco: Aldo Fabrizi, Anna Magnani, Giovanna Galletti, Marcello Pagliero, Ákos Tolnay, Alberto Tavazzi, Amalia Pellegrini, Carla Rovere, Carlo Sindici, Eduardo Passarelli, Francesco Grandjacquet, Harry Feist, Joop van Hulzen, Maria Michi, Nando Bruno, Turi Pandolfini e Vito Annichiarico.
Sinopse: Roma, 1944. Um dos líderes da Resistência, Giorgio Manfredi (Marcello Pagliero), é procurado pelo nazistas. Giorgio planeja entregar um milhão de liras para seus compatriotas. Ele se esconde no apartamento de Francesco (Francesco Grandjacquet) e pede ajuda à noiva de Francesco, Pina (Anna Magnani), que está grávida. Giorgio planeja deixar um padre católico, Don Pietro (Aldo Fabrizi), fazer a entrega do dinheiro. Quando o prédio é cercado, Francesco é preso pelos alemães e levado para um caminhão. Gritando, Pina corre em sua direção e é metralhada no meio da rua. Giorgio foge para o apartamento de sua amante, Marina (Maria Michi), sem imaginar que este seria o maior erro da sua vida.