Pular para o conteúdo

Café Arcaico | O Pagador de Promessas

“Intolerância religiosa, sensacionalismo jornalístico, diferenças culturais e a genialidade de Dias Gomes”

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes (maior prêmio do Festival e único filme brasileiro a conseguir tal feito), e indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, “O Pagador de Promessas” é uma das maiores e mais importantes obras do cinema nacional. Premiado e aclamado mundo afora.

Dirigido por Anselmo Duarte, baseado na peça teatral de Dias Gomes (que também assina o roteiro do filme) e estrelado por Leonardo Villar e Glória Menezes, a obra conta a história de Zé do Burro (Leonardo Villar), um homem simples, dono de uma pequena propriedade rural no sertão da Bahia, que ao ver Nicolau, seu burro de estimação, adoecer, após ser atingido na cabeça por um galho, e após todas as tentativas, sem sucesso, de curá-lo usando a medicina, resolve fazer uma promessa para Santa Bárbara, para que o animal se curasse. Como na região em que ele morava não havia nenhuma igreja com a imagem de Santa Bárbara, Zé do Burro vai até um terreiro de Candomblé e formaliza sua promessa para Iansã, divindade que, segunda a crença, é a senhora dos ventos e da tempestade, equivalente à Santa Bárbara no Catolicismo.

Na promessa, se o burro ficasse bom, carregaria uma cruz tão pesada quanto a de Cristo, desde sua roça até a igreja de Santa Bárbara, em Salvador, numa distância de sete léguas (aproximadamente 34km), entraria na igreja e a colocaria em frente ao altar, e ainda, dividiria sua terra (que não era muito grande) com os lavradores mais pobres. Com a graça recebida, Zé do Burro então, dá início à sua jornada, acompanhado de sua esposa Rosa (Glória Menezes).

Chegando em Salvador, na madrugada, os dois sertanejos já despertam toda a curiosidade de alguns habitantes da vida noturna da capital baiana, entre eles, um sujeito conhecido como “Bonitão“(Geraldo Del Rey) um mau caráter que se aproveitava de mulheres que o sustentava com dinheiro de prostituição.

Na frente da igreja, e como esta ainda se encontrava fechada devido ao horário, Zé do Burro resolve passar a noite ali mesmo com a sua cruz. Rosa, mesmo insatisfeita por ter que dormir na dura escadaria da igreja, e também com medo que acontecesse alguma coisa, permanece com seu marido. Até que, “Bonitão“, querendo tirar proveito da situação, chega até o casal oferecendo “ajuda”, como se tivesse boas intenções, propondo levar Rosa até um hotel de confiança, para que ela passasse à noite, e como seu interesse era na esposa, ele mesmo diz que seria recomendável que o marido ficasse por ali, cuidando da cruz para que ninguém a roubasse. Zé então, em sua inocência, aceita a “ajuda” de Bonitão, e este leva Rosa para um hotel. Já no caminho, ele começa a tentativa de assédio pra cima da jovem e carente esposa, que insatisfeita com algumas coisas em seu casamento, e pela falta de atenção que recebia do marido, começa a desabafar com ele e acaba cedendo à investida do cafajeste, e os dois passam a noite juntos.

Quando o dia amanhece, os sinos da igreja tocam e os preparativos para a missa e procissão pelo dia de Santa Bárbara se iniciam. As pessoas começam a reparar naquele sujeito dormindo na escadaria e sua cruz, e o padre da paróquia, Padre Olavo (Dionísio Azevedo), vai até o pobre homem para ver do que se tratava tudo aquilo. Zé do Burro, então, conta a sua história, enquanto sobe as escadas com a cruz nos ombros, convicto de que sua promessa estava prestes a ser cumprida. No início, o padre parecia uma figura acolhedora, mas ao finalizar a narrativa, Padre Olavo,  questiona o fato da promessa ter sido feita em um terreiro de Candomblé, questiona que Iansã não é Santa Bárbara e acusa Zé do Burro de ter sucumbido à tentação de Satanás e que, sendo assim, ele não poderia entrar em sua igreja carregando aquela cruz.

Eis que surge o repórter de um jornal sensacionalista (Othon Bastos), para cobrir a história e tirar proveito de todo potencial que esta tinha. O repórter, então, após entrevistar Zé do Burro, publica nos jornais uma versão toda distorcida dos fatos, colocando como novo Cristo, defensor dos pobres e da Reforma Agrária (já que na promessa, ele dividira suas terras com lavradores mais pobres), afim de tornar Zé do Burro um mártir, fazendo de tudo para alavancar sua carreira jornalística. O jornal publicado, circula por toda a cidade, chamando a atenção da população, e o repórter já tinha grandes planos, nada éticos, para o pobre sertanejo, como, transformá-lo em político, colocando-o no governo, para poder se aproveitar de toda a situação.

Sem saber o que fazer, Zé do Burro se via cercado por pessoas de todos os cantos, todos queriam alguma coisa do pobre homem. O repórter, em busca da fama, os pobres e desamparados viam em uma figura messiânica, que intercederia por eles, as praticantes de Candomblé, viam nele, alguém capaz de acabar com a intolerância de Padre Olavo, rompendo com a discriminação que sofriam da Igreja Católica, “Galego“, dono de um armazém defronte à igreja, queria publicidade, e que seu estabelecimento saísse em destaque nas fotos dos jornais, enquanto “Bonitão”, queria se livrar de Zé do Burro, para poder se aproveitar de sua esposa Rosa. Sendo assim, ele denuncia o pobre homem à polícia secreta, alegando que seria uma ameaça comunista (lembrando que a obra é ambientada no início da década de 60, poucos anos antes da Ditadura Militar). Diante de toda essa situação adversa, ainda descobre sobre a traição de sua esposa.

Com medo de toda a repercussão negativa, Padro Olavo pede ajuda de seus superiores para que uma solução seja tomada, de modo pacifico e sem que, as convicções da igreja fossem contrariadas. Então, após uma reunião com membros da Congregação, o Monsenhor Octaviano chega à igreja, e como solução, propõe a Zé do Burro abdicar de sua promessa feita em um terreiro de Candomblé, jogar fora sua cruz e refazer a sua intenção seguindo os conceitos da Igreja Católica. Porém, temendo pela vida do seu animal de tanta estima, e com medo de faltar com a palavra à Santa Bárbara, nega o pedido do Monsenhor e se recusa a abrir mão de sua promessa. Sem solução, ele entra em desespero e, em um momento de ira, tenta arrombar a porta da igreja com a cruz, mas sem sucesso. Novamente ele fica desorientado, sendo apenas amparado pelas pessoas pobres do local (capoeiristas, vendedora de quitutes, praticantes do Candomblé) que o rodeavam. E agora sua história virara caso de polícia, sendo considerado uma ameaça pelas autoridades.

Sem rumo e já sem esperança, Zé do Burro, não consegue entender nada da situação, não compreendia como a igreja que ele sempre fora devoto fechara as portas pra ele, não entendia como algumas pessoas que diziam querer ajudá-lo só se aproveitavam dele, não entendia o porquê não conseguiria cumprir sua promessa depois de estar tão próximo de seu objetivo. No final das contas, as sete léguas percorridas a pé, sob forte sol e chuva e com uma cruz nos ombros, acabara sendo a parte fácil a ser cumprida. Sua vida desmoronou de uma hora pra outra. E o pobre sujeito só queria cumprir sua promessa!

– “Não foi ao senhor (se dirigindo a Mosenhor Octaviano) que eu fiz a promessa, foi à Santa Bárbara!”

São tantas cenas e frases marcantes, a grande atuação de Leonardo Villar, transparecendo toda a simplicidade e inocência do homem do sertão, e tantos temas relevantes e ainda atuais a serem discutidos e refletidos, criados de forma genial por Dias Gomes e muito bem executados por Anselmo Duarte.

Não à toa, é uma obra de arte do cinema tupiniquim!

Informações técnicas. 

Título original: O Pagador de Promessas.
País de origem: Brasil
Ano: 1962
Direção: Anselmo Duarte.
Roteiro: Dias Gomes (Baseado na obra) e Anselmo Duarte
Duração: 1 hora e 37 minutos.

Elenco: Leonardo Villar, Gloria Menezes, Dionísio Azevedo, Geraldo Del Rey, Othon Bastos, Norma Bengell, Antonio Pitanga, Gilberto Marques…

Sinopse: Zé do Burro (Leonardo Villar) e sua mulher Rosa (Glória Menezes) vivem em uma pequena propriedade a 42 quilômetros de Salvador. Um dia, o burro de estimação de Zé é atingido por um raio e ele acaba indo a um terreiro de candomblé, onde faz uma promessa a Santa Bárbara para salvar o animal. Com o restabelecimento do bicho, Zé põe-se a cumprir a promessa e doa metade de seu sítio, para depois começar uma caminhada rumo a Salvador, carregando nas costas uma imensa cruz de madeira. Mas a via crucis de Zé ainda se torna mais angustiante ao ver sua mulher se engraçar com o cafetão Bonitão (Geraldo Del Rey) e ao encontrar a resistência ferrenha do padre Olavo (Dionísio Azevedo) a negar-lhe a entrada em sua igreja, pela razão de Zé haver feito sua promessa em um terreiro de macumba.