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Café Arcaico | Paris, Texas

A perfeição cinematográfica, por Wim Wenders.

Vencedor da Palma de Ouro em Cannes, “Paris, Texas” é quase uma unanimidade quando se fala no brilhante cineasta alemão e seu realizador, Wim Wenders. E não é para menos, essa obra de arte lançada em 1984, estrelada por Harry Dean Stanton, Nastassja Kinski, Dean Stockwell, Hunter Carson e Aurore Clément, trata-se de uma realização tão esplendorosa que chega a ser praticamente impossível fazer qualquer ressalva ou apontar (inexistentes) defeitos. E esse patamar alcançado por tal projeção, é algo sim, a ser reverenciado, na medida em que a filmografia do diretor é carregada por feitos tão relevantes que, facilmente o colocaram entre os principais diretores de seu país, e um dos grandes da história do cinema.

Com roteiro escrito pelo ator e dramaturgo Sam Shepard, em parceria com L.M. Kit Carson, “Paris, Texas” é um drama familiar que aborda temas como, angústia, coração partido, busca pela redenção e por uma identidade, crise social e emocional, falência das relações humanas e da família como instituição, contrastando com ascensão econômica vivida pelos Estados Unidos à época. Contraposição feita, justamente, como crítica à essa situação do país e a criação de uma sociedade baseada no consumismo, vazia e autômata, incapaz de se relacionar, impossibilitada de enxergar além do próprio umbigo, centrada no egoísmo. O olhar clínico de Wenders, aliás, um estrangeiro naquela terra, mas com total conhecimento e controle do que estava realizando, faz de sua obra a mais contundente (perfeita, nunca é demais dizer) e significante sobre o assunto, entre diversas que foram lançadas na época, visto que o tema estava no auge.

Com um grande plano aberto da excelente direção de fotografia de Robby Muller e, com os acordes de guitarra marcantes do músico Ry Cooder, Wim Wenders inicia sua obra em um infinito deserto texano. Nesse cenário quente e seco, encontra-se um andarilho, com suas roupas todas esfarrapadas e com sede, o sujeito em questão é Travis Henderson (Harry Dean Stanton), um homem com seus quarenta e tantos anos que parece caminhar sem rumo. Nada se sabe sobre o indivíduo, mas após um desmaio em decorrência da inanição, ao adentrar um bar na localidade, é revelado que, Travis tem um irmão mais novo chamado Walter Henderson (Dean Stockwell), e seu desaparecimento já completava quatro anos, nessa caminhada aparentemente sem destino. Walter, que vive em Los Angeles – Califórnia, ao ficar sabendo do paradeiro de seu irmão mais velho, desloca-se até o Texas para buscá-lo.

Com muita calma e sem nenhuma pressa, como tem que ser, Wenders aos poucos, vai construindo seus personagens e trama. É assim que, durante a viagem de volta, quando os dois irmãos são obrigados a ir de carro do Texas à Califórnia já que Travis sente pavor em viajar de avião, mais fatos vão sendo apresentados, como o andarilho também tem um filho com sete anos de idade, quase para completar oito, chamado Hunter (Hunter Carson). A criança vive sob os cuidados de Walter e sua esposa Anne Henderson (Aurore Clément) que o criaram como se fosse deles. E não só isso, o pequeno Hunter foi deixado à porta da casa de seus tios, pela ex-esposa de Travis, a jovem (cerca de vinte anos mais nova do que ele) Jane Henderson (Nastassja Kinski), que desde então, nunca mais foi vista. Na viagem de dois dias de duração, cruzando o deserto do Mojave, entre conversas curtas e silêncios significativos, de um protagonista que, claramente carrega um fardo em suas costas, vai se tendo noção de que algo muito grave aconteceu na vida da pequena família de Travis e Jane, o que consequentemente, afetou o filho do casal.

Um dos principais destaques do Novo Cinema Alemão, Wim Wenders além de ser um artista multifuncional, trabalhando como fotógrafo, dramaturgo e produtor de cinema, sempre foi também um cineasta inquieto, tendo o deslocamento e pessoas tentando encontrar a si próprios, seja em sua Alemanha ainda arrasada no pós guerra, ou outros países, como tema frequente em seus trabalhos. Essa temática rendeu alguns ótimos road movies em seu glorioso currículo como, Alice nas Cidades (Alice in den Städten, 1974), Movimento em Falso (False Bewegung, 1975), No Decurso do Tempo (Im Lauf Der Zeit, 1976), e claro, Paris, Texas que, mesmo não sendo um filme totalmente de estrada, tem isso em muito tempo de tela como principal cenário, em um show de registros de imagens realmente belíssimos, como sempre padrão vindo  do cultuado diretor alemão, sob a lente de Robby Muller, seu parceiro de ofício frequente e de longa data.

Wenders, entre tantas qualidades e algumas peculiaridades, sempre teve um forte apreço pela imagem, algo que fica nítido em suas obras, sejam fictícias ou documentais, muito devido a seu trabalho com a fotografia, com direito a exposições fotográficas pelo mundo. Outra profunda admiração nutrida por ele, era a Meca Cinematográfica, também conhecida como Hollywood, desde sempre o cinema hollywoodiano despertava-lhe a curiosidade e um certo fascínio. Ao final da década de 1970, o ainda jovem diretor migrou para a terra do Tio Sam e conseguiu exercer suas atividades por lá. Mas a indústria norte-americana reservou algumas lições e contratempos, com as limitações impostas por exigências de estúdios e produtores, algo que, para um artista como ele, impedia-o por demais de atingir o auge de sua criatividade. Mesmo assim, ainda conseguiu prosperar com o lançamento do interessante suspense Hammett – Mistério em Chinatown (Hammett, 1982).

Tais experiências negativas foram, de certa forma, relatadas em O Estado das Coisas (Der Stand der Dinge, 1982), obra que é considerada um de seus melhores trabalhos até hoje e relata os passos de um promissor cineasta alemão (que coisa, não?) e suas dificuldades para continuar rodando seu filme, devido ao misterioso sumiço do produtor norte americano, que havia voltado aos Estados Unidos em busca de verba e patrocínios para a sequência das filmagens. Mesmo com tantos empecilhos em solo estadunidense, a influência e as referências do cinema hollywoodiano sob as  realizações de Wenders não cessaram, algo que pôde ser visto em seu projeto seguinte, Paris, Texas. E o que fica perceptível logo de cara, no já citado início da projeção é que, Wenders faz uma clara homenagem aos clássicos faroestes, ao melhor estilo John Ford (que reinou no tema durante décadas) e até mesmo ao mestre e gênio Sergio Leone, principal nome dos conhecidos spaghetti western (termo que Leone odiava, mas que se popularizou demais).

Isso vai ficando cada vez mais claro, não só pelos grandes planos abertos, o deserto e a trilha sonora, mas também quando nos é apresentado o seu protagonista, Travis Henderson, que nada mais é do que similar ao tão manjado cavaleiro solitário, silencioso, com marcas do passado ecoando no presente, e com uma alguma missão a cumprir. Só que, diferente do exímio pistoleiro clichezão, nosso (anti) herói surge sem montar cavalo algum, munido apenas de um galão d’água já esvaziado, olhando sem rumo pela imensidão. E aqui também, os saloons dão lugar aos restaurantes e motéis de beira de estrada, com seus luminosos e luzes de néon bem vistosas e, as pequenas cidades com ruas de terra (e a bola de feno sendo varrida pelo vento), são trocadas por grandes metrópoles como, Los Angeles e Houston.

Em uma verdadeira aula de cinema, Wenders não só desmantela o chamado american dream, mas também desmancha a típica figura do mocinho, símbolo do patriotismo norte americano, fazendo do herói em questão um sujeito rude, cheio de defeitos, frágil, falho, com atitudes bem questionáveis. Mas ao mesmo tempo em que desconstrói mitos, coisas vão sendo reconstruídas, e é essa a verdadeira busca de Travis, assim que seu estado de fuga dissociativa se esvai. O protagonista carrega consigo uma foto, o conteúdo da Polaroid é um terreno baldio de sua propriedade em meio ao deserto, no município de Paris, mas não a cidade da luz, capital francesa e todo seu glamour, mas uma pequena localidade do estado do Texas. Segundo ele, seu pai contava em forma de piada que, fora naquele local em que havia conhecido sua mãe, e não só isso, alí Travis teria sido concebido. Na busca por se reencontrar, Travis pretendia começar do zero, de volta às suas origens, e embora nunca tenha sequer chegado àquela cidade, foi nesse retorno à juventude, na conversa sobre os pais e o passado, que ele acabou por se reconectar com seu irmão caçula, o paciente e preocupado Walt.

Após passar anos na estrada, Travis chega na casa de seu irmão para enfim, um repouso, na tentativa também, de ser reinserido na sociedade, principalmente na vida de seu filho. A estranheza e desconforto no reencontro é óbvia, porém, pouco a pouco, de forma sutil e serena, a relação pai e filho vai sendo restabelecida. A construção desse relacionamento expõe ainda mais o talento de Wim Wenders que, jamais interrompia cenas com cortes secos deixando algo parecer incompleto, priorizando sempre a criação de um ambiente que ficasse todo estabelecido e os sentimentos bem claros, antes de passar para outra questão. E é com todo esse cuidado, paciência e de forma crível, que a confiança e carinho aumenta cada vez mais entre os dois, tudo ali diante de nossos olhos. A paternidade, perdida por muito tempo, dá novo sentido à vida de Travis, que finalmente cria coragem para encarar a si próprio. É assim que, agora com as forças renovadas, ele volta à estrada, na esperança de reencontrar sua ex-esposa,  mas desta vez na companhia de Hunter, que anseia mais do que tudo rever a sua mãe.

O início das filmagens de Paris, Texas se deu por volta de 1983, com o roteiro ainda incompleto, sendo o mesmo escrito durante o desenvolvimento do filme, até porque, a intenção era de filmar tudo na ordem da história. Atrasos na entrega do script fizeram com que as gravações fossem paralisadas por alguns dias, mas nada que atrasasse o cronograma, com a finalização da obra entre um período de quatro a cinco semanas. Wenders dizia que, seu desejo era de “contar uma história sobre a América”, e mesmo sendo rodado nos Estados Unidos, em sua maior parte na região de Trans Pecos, parte oeste do estado do Texas, o orçamento veio de uma coprodução entre a Alemanha Ocidental e França. E ainda contou com o trabalho de assistente de direção da brilhante Claire Denis que, posteriormente, viria a se tornar uma renomada e talentosa diretora francesa, com uma filmografia notável e uma das melhores de seu país na atualidade.

Sobre o elenco, quando Wenders conheceu Dean Stockwell e o escolheu para dar vida ao irmão caçula Walter Henderson, o veterano ator já pensava em abandonar novamente a carreira cinematográfica (ele já havia dado um tempo na atuação em meados da década de 1960) e começar os negócios no mercado imobiliário. Ao aceitar o desafio, Stockwell acabou voltando ao cenário mainstream, amplamente requisitado. Dizia ele que, seu trabalho em Paris, Texas e Duna, de David Lynch, lançado no mesmo ano, havia sido um bom começo para sua sua terceira carreira. A atriz francesa Aurore Clément, que já tinha no currículo uma participação no clássico Apocalypse Now, viveu seu papel mais famoso no cinema na pele de Anne Henderson, a dedicada e atenciosa mãe de seu sobrinho Hunter, e ela está muito bem no filme, seguindo o padrão do ótimo casting. E por falar em Hunter, o papel do menino abandonado pelos pais ficou sob a responsabilidade de Hunter Carson, ator mirim e filho do roteirista do filme L.M. Kit Carson e da atriz Karen Black. O jovem concordou em atuar se a mãe estivesse presente nas gravações, e ela ainda o ajudou a memorizar suas falas.

Curiosidade: Hunter Carson, no ano seguinte, em 1985, fez uma participação na série Teatro dos Contos de Fadas, criada por Shelley Duvall, e exibida no Brasil pela TV Cultura (certamente quem cresceu nas décadas de 80 e 90 deve se lembrar desse programa clássico da infância). Sua aparição se deu no episódio Rip Van Winkle – O Dorminhoco, baseado no conto de Washington Irving, dirigido por Francis Ford Coppola, estrelado por Harry Dean Stanton e Talia Shire (eterna Adrian Balboa na saga de Rocky). E no capítulo em questão, Carson vive o personagem Little Rip, filho de Van Winkle, que é protagonizado por Dean Stanton, ou seja, ambos fizeram uma espécie de reprise nos papéis de pai e filho. 

O saudoso Harry Dean Stanton (1926 – 2017), artista com uma frutífera carreira no cinema, TV e na música, e um eterno coadjuvante de respeito, teve em Paris, Texas, a primeira oportunidade como estrela principal. Sua escalação para tal, se deu após uma conversa entre ele e Sam Shepard em um bar. Na ocasião, Stanton teria dito ao roteirista que estava cansado dos papéis que desempenhava e ansiava por fazer algo com mais sensibilidade e beleza. O que ele não imaginava era que Shepard estava considerando-o para interpretar Travis Henderson em seu novo filme, e algum tempo depois veio a ligação com o convite. A princípio, Wenders relatou que o ator parecia um pouco inseguro quanto a seu papel, mas no final das contas, Dean Stanton tirou de letra e presenteou o cinema com uma atuação memorável. Todo o peso angustiante de uma alma despedaçada pode ser vista no olhar entristecido e perdido, e no silêncio pesaroso do ator ao dar vida a seu personagem aparentemente inacessível. Stanton era um ótimo ator e sempre teve o merecido reconhecimento, sendo requisitado e ativo até a sua morte em 2017, aos 91 anos.

Fechando o elenco com chave de ouro, temos Nastassja Kinski e, talvez, ou melhor dizendo, com certeza, o maior destaque de todos. A atriz alemã, de carreira internacional, foi lançada no cinema justamente por Wim Wenders em 1975, em seu filme Movimento em Falso, e naquela época a jovem com apenas 14 anos de idade já demonstrava seu valor. Menos de uma década depois, os dois se reencontraram para trabalhar na obra mais aclamada na carreira de ambos. A dedicação de Kinski a esse trabalho foi tão grande, que a atriz escreveu um diário criando um pano de fundo para sua personagem, retratando-a como uma imigrante europeia, tendo Travis como a pessoa que a recebeu em sua nova terra, onde ela estava sozinha, com mais carinho e atenção. Outro fato interessante é que sua personagem, Jane Henderson, deve ter no máximo uns 30 minutos de tela, e mesmo assim, se tornou o símbolo de toda a obra. A icônica cena da jovem ex-esposa de Travis e mãe de Hunter, na cabine de Peep Show, sendo observada através de um vidro, vestida com um suéter framboesa em um ambiente fechado e claustrofóbico, é certamente a imagem mais famosa e que automaticamente vem à cabeça quando se fala em Paris, Texas.

Além de conquistar a condecoração máxima em Cannes, com decisão unânime dos jurados, a produção faturou também no mesmo festival o Prêmio FIPRESCI, concedido pela Federação Internacional dos Críticos de Cinema e o Prêmio Especial do Júri. E não só isso, a obra prima de Wenders se tornou um enorme sucesso de crítica e público, sendo amplamente aclamada mundo afora, ganhando status de clássico e deixando um legado de influências incontáveis, não só para o cinema, mas para a cultura pop e as artes em geral. Essa época ficou marcada como o auge da carreira do artista alemão que, num período de cinco anos (1982 – 1987), realizou três de seus trabalhos mais idolatrados, sendo eles, O Estado das Coisas, Paris, Texas e Asas do Desejo. Esse último lançado em 1987, fez com que o cineasta voltasse a ser premiado em Cannes, agora como melhor diretor, e ainda ganhou um remake norte americano, que acabou fazendo muito sucesso sob o título Cidade dos Anjos (CIty of Angels, 1998), dirigido por Brad Silberling, e estrelado por Nicolas Cage e Meg Ryan.

No mais, Paris, Texas é uma realização que reúne quesitos o suficientes para ser um dos melhores filmes já feitos, tais quais, um excelente roteiro com temas relevantes e atuais, fotografia impecável, atuações magistrais, trilha sonora marcante e profunda, cenários belíssimos, enquadramentos perfeitos e mise-en-scènes invejáveis, tudo isso conduzido por um mestre em seu ofício. Uma obra que desperta sensações e comove a cada momento em que a trama vai se esclarecendo. Um Wenders inspirado, que realiza com louvor seu principal objetivo e uma das maiores características de seu cinema, a de explorar a fundo os sentimentos de seus personagens, tendo isso como uma meta até mesmo maior do que precisamente contar uma história. Uma experiência cinematográfica única, envolvente do início ao fim, e quando seu desfecho – que é de uma beleza intensa e profundamente emocionante – se dissipa nos créditos finais, fica a certeza no espectador (com os olhos marejados, é claro) de que, o que se testemunhou ao longo de quase duas horas e meia, é uma verdadeira obra de arte a ser celebrada.

Título: Paris, Texas
Direção: Wim Wenders
Ano de Lançamento: 1984
Gênero: Drama
Duração: 145 minutos
País de Origem: Alemanha/França/Estados Unidos
Roteiro: Sam Shepard / L.M. Kit Carson

Elenco: Harry Dean Stanton – Travis Henderson

              Nastassja Kinski – Jane Henderson

              Dean Stockwell – Walter Henderson

              Aurore Clément – Anne Henderson

              Hunter Carson – Hunter Hernderson

              John Lurie – Slater

              Bernhard Wicki – Dr. Ulmer

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