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Café Arcaico | O Funeral das Rosas

“Todas as definições de cinema foram eliminadas, as portas estão abertas agora”

O significado da palavra “transgressor” no dicionário é apontado como: “aquele que transgride, que ultrapassa limites, não respeita as regras”, e creio que seja esse o adjetivo mais indicado, o que mais se encaixe para descrever o ousado e inovador projeto O Funeral das Rosas. Lançado em 1969, este filme que vagueia entre a narrativa e o documental, com um estilo de vanguarda e inventivo, tratando de assuntos como, a cultura queer e drag do Japão na década de 1960, em tons que remetem ao cinema underground, marcou a estreia do cineasta Toshio Matsumoto na direção de um longa metragem. Seu debute não só chamou atenção à época, como também ainda é considerado até hoje um dos principais expoentes da “Nuberu Bagu”, também conhecida como Nouvelle Vague Japonesa, movimento cinematográfico que ganhara força em solo nipônico naqueles tempos.

Ambientado em Tóquio, O Funeral das Rosas além de levantar a bandeira LGBTQIA +, traz também uma livre adaptação da tragédia grega de Sófocles, Édipo Rei, com elementos de A Branca de Neve e os Sete Anões (sim, é isso mesmo!). Dito isso, temos Eddie, uma jovem trans, interpretada por Pîtâ (ou Peter, nome artístico de Shinnosuke Ikehata), que é a mais nova atração do Bar Genet, um ponto requisitado pelos boêmios da capital japonesa. Por ser jovial e bela, acaba despertando uma rivalidade com a madame que gerencia o local, Leda (Osamu Ogasawara), que também é uma mulher trans e divide com Eddie o “amor” de seu “patrão” Gonda (Yoshio Tsuchiya), dono do estabelecimento onde ambas trabalham. A partir dessa premissa que parece simples, mas muito longe disso, somos levados à uma jornada pelo submundo da cidade, adentrando sua vida noturna, em um turbilhão de acontecimentos que, por muitas vezes, parecem não fazer sentido, ao mesmo tempo que são cheios de significado.

No final dos anos 1950, já adentrando a década seguinte, o cinema passou por diversas mudanças, que vieram com jovens cineastas trazendo novas ideias, formas técnicas e estéticas de produção. Com certa inspiração no que havia acontecido na Itália após a Segunda Guerra Mundial, com o movimento conhecido como neo realismo italiano, surgiam em diversos países movimentos similares como, a Nouvelle Vague Francesa, a British New Wave no Reino Unido, o Cinema Novo no Brasil, a Nouvelle Vague Tcheca, entre outros. Seguindo essa linha, o Japão também aderiu a essa nova onda, que por lá ficou conhecida como Nuberu Bagu, com fortes influências do caldeirão político vivido pelo país naquela época. Começando com a ocupação militar dos Estados Unidos no pós guerra e a consequente aliança entre as duas nações, da censura por parte do ministério da educação, que decidia o que apareceria nos livros escolares ou não, fatores, estes e outros que foram causando descontentamento e revolta, fazendo surgir movimentos sindicais e estudantis que travaram constantes protestos contra a atual política de seus governantes.

Diferente do que aconteceu em outros países, essa nova onda nipônica não teve seu pontapé inicial partindo de teóricos ou críticos de cinema, o incentivo veio de dentro da própria indústria cinematográfica que passou a promover alguns jovens assistentes de direção ao cargo principal. Entre os principais cineastas desse movimento estiveram, Nagisa Oshima, Shohei Imamura, Masahiro Shinoda, Hiroshi Teshigahara, Seijun Suzuki, Kaneto Shindo, Koji Wakamatsu, Yoshishige Yoshida e Toshio Matsumoto. Mesmo diferindo na maneira com que se deu o surgimento desse novo cinema em relação aos demais, a premissa foi a mesma, onde os jovens realizadores foram às ruas, filmando as periferias, mostrando uma outra e dura existência, de pessoas à margem da sociedade, na tentativa de fazer com que a arte voltasse a dialogar com o seu povo. Outra mudança positiva foi a representatividade feminina, com a mulher ganhando sua devida força e com seu papel importante de protagonismo.

Com tudo isso contextualizado, chegamos ao que interessa, a brilhante realização de Toshio Matsumoto, o icônico O Funeral das Rosas. Especialista em curta metragens, formato com o qual trabalhou na maior parte de sua carreira, Matsumoto presenteou a sétima arte com o seu primeiro longa, já com a Nuberu Bagu consolidada, passada uma década de atividade, mas isso não impediu que seu trabalho conseguisse ainda ser uma grande quebra de padrões. Com uma liberdade narrativa pouco (ou nunca) vista até então, O Funeral transita entre o drama, comédia, terror, suspense, documentário, onde uma coisa vai levando à outra, com direito a toda influência ocidental, algo típico do movimento. E que aqui pode ser visto e ouvido com o rock dos anos 60, tocando no bar e em festas psicodélicas, a pop art, um personagem chamado Guevara, o pôster dos Beatles na parede. De certa forma, essa influência do ocidente acabou sendo devolvida, haja vista que, o próprio Stanley Kubrick admitiu que Bara no Soretsu foi uma de suas principais inspirações na realização de seu clássico Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971).

As noites de Tóquio, com resquícios do cinema marginal do ocidente, são mostradas principalmente através de sua protagonista, Eddie, que desde criança já vinha tendo noção sobre sua orientação sexual e identidade de gênero. Por essa causa sofria com a forte repressão de sua mãe que a espancava e zombava de sua condição, seu pai havia abandonado as duas há algum tempo. E para dar vida a essa personagem tão peculiar, a escolha foi por uma jovem artista, cantora e dançarina de 17 anos, Shinnosuke Ikehata, que atendia pelo nome artístico de Peter. Nome este, escolhido aos seus 16 anos, devido ao fato de que ela dizia se parecer com Peter Pan, com suas roupas extravagantes e seu jeito de dançar. Sempre com aparência andrógina, Peter se consolidou como um dos maiores ícones gays do Japão, fazendo um enorme sucesso. E em determinado momento da projeção, em uma das diversas vezes que deixa de ser uma obra ficcional e se torna um documentário, meio que um making of da produção, a atriz é entrevistada e diz que se identifica muito com o seu papel, por isso havia aceitado protagoniza-la.

Essas viradas de chave vão acontecendo até com uma certa frequência no desenrolar da trama, com alguma cena sendo interrompida, para ser realizada alguma entrevista, seja com algum membro do elenco, ou qualquer pessoa aleatória, ou com claquetes propositais, como se estivessem finalizando a gravação e mostrando bastidores. Na sessão dos entrevistados, Matsumoto dialoga com cidadãos desconhecidos, e que vivem na realidade LGBT da época, sendo eles homossexuais ou pessoas trans, que dão depoimentos sobre suas vidas. Em seus relatos, esses indivíduos contam como é viver na sociedade atual sendo gay ou travesti, sobre preconceitos, sempre deixando claro como são felizes depois de terem se assumido como são, como sempre desejaram ser, da forma como se enxergavam. Enfatizando como viviam sem arrependimentos, não havendo a menor chance de voltarem atrás em suas decisões e, principalmente, pontuando tudo isso como algo natural, nada comportamental ou decorrente de qualquer trauma ou transtorno, muito menos uma doença, como se enxergava naquela época, apenas eram assim desde que nasceram e tudo isso é normal.

A quebra de paradigmas em O Funeral das Rosas segue também fazendo um ode ao movimento hippie e à contracultura, com direito à pessoas filosofando gratuitamente em festas regadas a Rock ‘n’Roll, maconha e sexo liberal. Todo esse emaranhado de situações vão se desenrolando através de uma montagem nada convencional, com cenas que ocorreram no início, depois estão lá no fim da projeção, ou cenas que voltam a acontecer, pois estava mostrando duas perspectivas de pessoas diferentes em um mesmo momento que acaba se encaixando, por vezes também, Eddie está em dois locais ao mesmo tempo, em acontecimentos distintos (com certeza, Quentin Tarantino deve ter curtido essa forma de edição). Outra loucura de Matsumoto, são as cenas aceleradas ao som de música clássica, geralmente em momentos de alguma briga (no já citado Laranja Mecânica, também há cenas aceleradas à lá Bara no Soretsu). Isso sem contar o momento épico de um confronto entre Leda e Eddie, remetendo aos duelos de pistoleiros dos faroestes spaghetti, muito populares naquela década. Que momento, inclusive!

Bara no Soretsu causou barulho em seu lançamento, e não era pra menos, visto que o trabalho de Matsumoto é cheio de liberdade, energia, subversão e padrões inexistentes. E que, além de abraçar uma estética progressista de filmagem, também se apoia em conjunturas do cenário político e social japonês da época, como por exemplo, os manifestantes, a revolta estudantil em confronto com as autoridades, em cenas onde os militantes interagem com personagens do filme. Assim como, o cineasta faz questão de filmar as ruas, mostrar o povo e convicto em manter fatores como, os pedestres olhando para a câmera enquanto essa transitava pelas ruas por entre a população, despertando a curiosidade dos transeuntes. Em demonstração de uma Tóquio sem suas maiores belezas turísticas, com o foco em duras realidades, como era de fato, a característica maior da Nuberu Bagu.

Em meio à tanta loucura, que por vezes beira o surrealismo, o contexto histórico e os temas contemporâneos em abordagem estão ali pontuando que tudo o que é visto faz parte da vida real, é o que está acontecendo de importante no país e no mundo, assim como a necessidade pela militância e levantar a bandeira pelas pessoas trans e de todas do universo LGBTQIA +. Uma luta que já vem sendo travada há tempos, conquistas foram alcançadas, mas ainda encontra-se distante do ideal, por isso Bara no Soretsu está longe de envelhecer, sua pauta ainda segue atualíssima, necessária e de extrema urgência. Toshio Matsumoto ousou em experimentar, realizando uma obra profunda, para ser vista e sentida (me atrevo a dizer, já que ousadia é o tema), tal qual o gênio francês Jean-Luc Godard brindava o cinema em seus tempos mais áureos (também na década de 1960). Em resumo, O Funeral das Rosas é uma obra de arte sem precedentes, peculiar, genial e representativa, e nunca é demais lembrar o quão importante é a representatividade.

Título: O Funeral das Rosas

Direção: Toshio Matsumoto
Ano: 1969
País: Japão
Duração: 104 minutos
Gênero: Drama

Elenco:   Peter: Eddie

              Osamu Ogasawara: Leda

                Yoshio Tsuchiya: Gonda

                Emiko Azuma: Mãe de Eddie

                Toyosaburo Uchiyama: Guevara

                Don Madrid: Tony

                Koichi Nakamura: Juju

                Chieko Kobayashi: Okei

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