À minha mãe, a todas as mães!
Desde o início de sua carreira, o cultuado e talentoso cineasta espanhol Pedro Almodóvar sempre despertou interesse e, já havia conquistado um certo público cativo que ficavam ansiosos por algum novo trabalho de sua autoria. Filmes como, Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas da Turma (Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón, 1980), Labirinto de Paixões (Laberinto de Pasiones, 1982), Maus Hábitos (Entre Tinieblas, 1983), Matador (Idem, 1986) e A Lei do Desejo (La Ley del Deseo, 1987), o tornaram conhecido em circuitos de cineclubes pela Espanha, nesse período que é classificado como a primeira fase de sua carreira. O reconhecimento internacional veio com Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (Mujeres al borde de un ataque de nervios, 1988), clássica comédia estrelada por Carmen Maura, Rossy de Palma e Antonio Banderas que, além da consagração, lhe rendeu indicações em diversas premiações como, Globo de Ouro, Bafta e Oscar.
Nos anos seguintes, foi ficando cada vez mais claro o amadurecimento do agora consagrado diretor que, sempre esbanjou talento mas agora parecia se tornar um realizador mais completo e competente, com suas obras que ficavam cada vez mais maduras. Crescimento que se deu mesmo sem abandonar os temas que lhe eram peculiares como, a comédia (muitas vezes pastelão, por vezes, um humor mais ácido), sexo, homossexualidade, identidade sexual, travestis e idolatria às mulheres, sempre com sua forma irreverente, polêmica e com as tradicionais cores de Almodóvar, utilizadas para expressar os sentimentos vividos por seus personagens. Ao longo da década de 1990, com seus trabalhos de qualidade mais apurada, pontuados por filmes como, Ata-me! (Átame, 1990), De Salto Alto (Tacones Lejanos, 1991), A Flor do Meu Segredo (La Flor de Mi Secreto, 1995) e, principalmente Carne Trêmula (Idem, 1997), a julgar por ordem cronológica e como a evolução vinha filme após filme, parecia que Pedro Almodóvar estava se preparando, como um ensaio, para o que vinha pela frente.
Isso porque, existe um consenso geral de crítica e público de que, em 1999, o cineasta veio a atingir o auge de sua maturidade, com o premiadíssimo Tudo Sobre Minha Mãe (Todo Sobre Mi Madre). Filme que caracterizou sua obra prima até aquele momento (ou até hoje), um drama “almodovariano” de tamanha sensibilidade, tão humano e tocante, trazendo à tona diversos temas sensíveis e importantes, quebrando certos tabus, realizado com um apuro técnico impecável, atuações memoráveis e um roteiro afiadíssimo escrito por ele próprio. Uma obra que rodou o planeta e conquistou espectadores (que se tornaram seus fãs) ao redor do mundo, colocando Pedro Almodóvar com louvores em seu devido lugar, entre os melhores cineastas da atualidade. E por que não, entre os maiores de todos os tempos? Não seria nenhum exagero. Mas vamos ao filme:
Manuela (Cecilia Roth), uma enfermeira e atriz amadora, vive em Madrid com seu filho Esteban (Eloy Azorín), um adolescente aspirante a escritor que adora cinema, teatro e literatura, tem uma admiração especial por sua mãe, sua principal fonte de inspiração e que, anseia por obter informações sobre seu pai, até então desconhecido por ele. Em seu aniversário de dezessete anos, o jovem e sua mãe vão ao teatro assistir à peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennesse Williams e, ao término do espetáculo, em uma noite chuvosa, Esteban resolve pegar um autógrafo da estrela da peça, Huma Rojo (Marisa Paredes). Enquanto corre atrás do táxi onde estava a atriz, o aniversariante é atropelado e acaba falecendo no hospital. Agora sozinha e com dificuldades óbvias em lidar com a morte de seu filho, Manuela parte para Barcelona, em busca do pai de Esteban que, até o último contato entre os dois, vivia e trabalhava como travesti na Catalunha, com a dura missão de lhe dar a trágica notícia. Em uma viagem que, para a protagonista, seria de um difícil confronto com o passado que tanto ela quis fugir, quando foi embora para a capital espanhola.
Toda a trama vai se desenvolvendo nessa sofrida jornada de Manuela, com algumas pessoas marcantes que cruzam o seu caminho como, a travesti Agrado (Antonia San Juan), amiga de longa data da protagonista, mas que não se falavam há quase vinte anos, porém o reencontro fortalece novamente a amizade entre as duas; Irmã Rosa (Penélope Cruz), uma jovem freira que logo descobre estar grávida e ter contraído o vírus HIV. Coincidentemente, sua gravidez e enfermidade veio de uma relação com a travesti Lola, que também é pai de Esteban e ex-marido de Manuela; e Huma Rojo, a atriz que, involuntariamente acabou ocasionando o acidente que levou a óbito o filho de Manuela. A vida dessas quatro personagens femininas e tão diferentes se entrelaçam, fazendo surgir entre elas uma forte amizade, todas com seus dramas pessoais, com suas qualidades e defeitos, empoderadas, fortes e ao mesmo tempo frágeis, vivenciando algumas situações que podem parecer bizarras à primeira impressão, mas não menos humanas.
O título Tudo Sobre Minha Mãe faz uma clara menção ao clássico de 1950, All About Eve (Tudo Sobre Eva), de Joseph L.Mankiewicz que, aqui no Brasil foi traduzido como A Malvada, vencedor de seis Oscars, incluindo melhor filme e direção. Essa homenagem de Almodóvar fica evidente logo ao início de sua obra, quando Esteban e sua mãe se reúnem no sofá para assistirem juntos ao premiado filme que está sendo exibido na TV. E nesse momento, em um diálogo entre mãe e filho, o jovem mostra todo seu interesse em sua genitora, e tem em mãos lápis e um caderno de anotações, onde escreve sobre a matriarca, Esteban quer aprender tudo sobre sua mãe e registrar o aprendizado. E aqui é tudo sobre a mãe, é tudo sobre Manuela, tudo sobre sua vida, tudo sobre o seu universo e tudo sobre os sacrifícios que ela fez e os perrengues que passou para criar sozinha o seu filho. E mesmo que seu passado não seja mostrado, sabemos que esses fatos foram cruciais para moldar a mulher que ela veio a se tornar no presente.
Manuela é o centro de tudo, até mesmo em seu novo ciclo inusitado de amigas, se tornou o elo de ligação entre todas. A “Manuela Mulher” com seus desejos e anseios, e a “Manuela Mãe”, com seu instinto materno aflorado, sentimento que a faz acolher Irmã Rosa, grávida e soropositiva, com sérios problemas com sua mãe conservadora e cheia de preconceitos. A “Manuela Amiga”, que consegue um emprego para sua companheira Agrado, como assessora da atriz Huma Rojo, assim ela poderia deixar o trabalho de garota de programa. E por fim, a “Manuela Ferida”, com um pesado fardo a carregar, em confronto com o passado e lidando com o penoso presente, enlutada pela morte de seu filho, sem rumo, em desespero, procurando de alguma forma recomeçar e preencher o vazio que a dominava por completo, ou apenas aprender a conviver com as marcas que a vida lhe deixava. Em uma busca onde novamente sua vida se cruzava com a peça Um Bonde Chamado Desejo, encenação que sempre pontuou momentos importantes em sua existência, desde quando conheceu o homem que viria a ser o seu marido, até a morte de seu querido Esteban.
Todos esses traços de Manuela, tantas facetas canalizadas em uma só mulher, ganham vida de forma brilhante com a atuação de Cecília Roth. A atriz argentina, de carreira internacional e premiada, e colaboradora de longa data de Almodóvar, fez de Manuela seu maior papel no cinema, desempenho que lhe rendeu novamente o Prêmio Goya de Melhor Atriz (premiação mais importante da indústria cinematográfica da Espanha). Quem tem atuação notável também é Antonia San Juan no papel de Agrado que, muitas vezes figura como um alívio cômico, mas sempre deixando transparecer os dramas de sua vida, com a sua luta diária, inclusive a cena do “Monólogo de Agrado” protagonizada por ela é uma das melhores de toda projeção, um momento memorável. E fechando o ciclo das quatro amigas, a experiente Marisa Paredes e a jovem Penélope Cruz merecem destaque nos papéis, respectivamente, de Huma Rojo, atriz cheia de problemas e com uma relação conturbada com a também atriz, Nina e, a carente e frágil Irmã Rosa, tão necessitada de uma figura materna.
Além de um elenco feminino tão entrosado e competente, a película de Almodóvar ainda conta com um excelente trabalho do diretor de fotografia brasileiro, de carreira internacional desde os anos 1970, Affonso Beato que, já havia colaborado com o diretor em A Flor do Meu Segredo e Carne Trêmula. Sua realização com as lentes é um verdadeiro primor, potencializando ainda mais as já citadas cores de Almodóvar, aqui, com destaque especial à cor vermelha, a que mais representa Manuela. Seguindo ainda com a gama de colaboradores sempre presentes nos trabalhos do cineasta, entre elenco e equipe, a trilha sonora belíssima, alternada entre jazz e valsa, é de autoria do músico espanhol e de grande prestígio mundo afora Alberto Iglesias que, frequentemente marca presença na filmografia almodovariana, desde 1995 até os tempos atuais.
Como sempre acontece nos trabalhos de Pedro Almodóvar, Tudo Sobre Minha Mãe também é um filme onde as mulheres brilham, a obra é toda delas, e esse genial artista espanhol sabe como poucos adentrar o universo feminino com uma sensibilidade ímpar. Trabalhando cada personagem e seu drama vivido de uma maneira individual, dando o devido espaço a todas, mesmo que seja para contar a história de sua protagonista, Manuela, afinal de contas, cada pessoa que entra em sua vida acaba por trazer um fato novo, uma renovada de forças em sua dolorosa trajetória. Mas não só isso, o cineasta ainda consegue exercer sua militância em causas nobres, como logo no início da projeção, fazendo uma campanha de conscientização sobre a importância da doação de órgãos e, ainda tratando com tanta naturalidade de temas sensíveis como, AIDS, preconceitos em relação a portadores do vírus HIV, travestilidade, orientação sexual, existencialismo, fé, religião, maternidade.
São tantas coisas importantes a serem ditas ao longo de pouco mais de noventa minutos, que só mesmo um artista tão único como Pedro Almodóvar seria capaz de conseguir esse trunfo com um roteiro tão grandioso e diálogos mais do que interessantes. Há ainda tempo para as homenagens feitas por ele à sétima arte, demonstrando toda sua paixão pelo cinema. São elas, os clássicos já citados, A Malvada e Um Bonde Chamado Desejo que, apesar de ser uma peça teatral, em 1951 ganhou uma versão cinematográfica, dirigida por Elia Kazan e estrelado por Vivien Leigh e Marlon Brando (no Brasil o filme se chama Uma Rua Chamada Pecado); além disso, a cena da tragédia de Esteban remete diretamente à Noite de Estréia (Opening Night), filme de 1977, dirigido por John Cassavetes; e por fim, a dedicatória ao término da projeção às atrizes Bette Davis, Gena Rowlands e Romy Schneider. O próprio cineasta disse certa vez em uma entrevista que, poderia ter estendido essas menções à Judy Garland, Gloria Swanson, Ava Gardner e Lana Turner, todas eram merecedoras, mas se limitou a dedicar somente à essas três estrelas que, de certa forma, exerceram uma grande influência em sua realização.
Lançado na Espanha no dia 08 de Abril de 1999, Todo Sobre Mi Madre foi um sucesso instantâneo, arrancando elogios da crítica em solo hispânico e, consequentemente, veio a consagração mundial, protagonizando êxitos em diversas premiações como, Prêmio Melhor Filme Estrangeiro no Globo de Ouro, César, Bafta, Oscar, entre outros, saindo premiado também em outros festivais, Goya, Cannes, Satellite Awards, a lista é bem extensa, com mais de cinquenta prêmios recebidos em categorias diversas pelo mundo todo. Juntamente com Fale com Ela (Hable con Ella, 2002), seu premiadíssimo filme seguinte, Tudo Sobre Minha Mãe segue sendo a obra máxima desse gênio do cinema, um filme que ainda encanta, emociona e ao mesmo tempo diverte, com seus momentos tragicômicos, típicos do mestre espanhol. Uma obra majestosa, tocante e representativa, que transborda feminilidade e dialoga sobre amor, perda e compaixão.
Título: Tudo Sobre Minha Mãe (Todo sobre mi Madre, 1999)
Direção: Pedro Almodóvar
Ano: 1999
País: Espanha
Duração: 101 minutos
Gênero: Drama
Elenco: Cecilia Roth – Manuela
Antonia San Juan – Agrado
Marisa Paredes – Huma Rojo
Penélope Cruz – Rosa
Candela Pena – Nina Cruz
Eloy Azorín – Esteban
Toni Cantó – Lola
Rosa Maria Sardà – Mãe de Rosa
Fernando Fernán Gómez – Pai de Rosa