“Pobre filho! Pobre filho! Veio só ao mundo.
Cresceu só, como um pobre passarinho.
Olhava em volta, procurando não sei o quê. Sozinho”…
Ao estrear na direção em 1961, com Accattone – Desajuste Social, o já polêmico e consagrado escritor, poeta e intelectual italiano Pier Paolo Pasolini, deixava bem claro a que veio, para fazer barulho e “abalar as estruturas”. O desnude de uma Itália tão pouco mostrada é feito em sua debutante obra, com filmagens em locais pobres e periféricos, se utilizando de pessoas locais e atores não profissionais (algo que o estreante diretor aprovou e repetiria ao longo de sua carreira cinematográfica), expondo uma dura realidade vivida por uma população simples, escanteada pela sociedade e esquecida por quem os governava. Povo que, marginalizado, precisava se virar de qualquer forma na luta pela sobrevivência, muitas vezes agindo à margem da lei e se colocando em situações que poderiam ferir o pouco de dignidade ainda restante, corroendo-lhes a alma. Seguindo nessa linha, em 1962, sua obra subsequente manteria a mesma abordagem e assim um de seus maiores êxitos viu a luz do dia, o comovente Mamma Roma.
Se em Accattone esse mundo de miséria era mostrado seguindo os passos de Vittorio, um cafetão que vivia para explorar a prostituta Madalena; em Mamma Roma, a mesma vida real é lançada em tela, agora com o protagonismo de uma garota de programa. Pasolini adentra pelas entranhas da capital italiana de um jeito bem peculiar, os seus pontos turísticos, bela arquitetura, paisagens românticas e históricas, dão lugar à comunidades pobres, lugares caindo aos pedaços, ruas sujas, feirantes, penhores, adúlteros, delinquentes, prostitutas e cafetões, uma Roma pouco vista. Por essas e outras, o cineasta italiano passou a vida toda rodeado de polêmica, sofrendo com perseguição e censura, batendo de frente com autoridades e igreja, sempre botando o dedo na ferida na hipocrisia do ser humano e instituições (sejam governamentais ou religiosas). Com isso, acabou por ganhar a alcunha de artista transgressor, algo que todo “gênio louco” já vivenciou por desafiar os padrões.
Mamma Roma traz a história da personagem título (Anna Magnani), uma prostituta de meia idade, que após o casamento de seu gigolô Carmine (Franco Citti), se vê livre de sua vida de meretriz e anseia por mudar de estilo e classe social. Sendo assim, busca seu filho Ettore (Ettore Garofolo), um jovem que já rumava para o fim da adolescência e que vivia no interior, longe dela, principalmente para não presenciar a vida que sua progenitora levava. Mamma Roma tentava recomeçar, trabalhando em uma banca de feira e morando em uma nova casa, em um bairro aparentemente melhor, mas ainda em construção, na busca por restaurar uma relação mãe e filho que praticamente nunca existiu. À medida em que Mamma tenta conciliar trabalho e família, fazendo de tudo para livrar Ettore da vida de criminalidade, vai se deparando com a cruel realidade em confronto com suas esperanças.
Com clara referência ao neorrealismo italiano, que na década de 1960 já havia sido praticamente deixado de lado pelos realizadores, Mamma Roma não só se assemelha às obras neorrealistas pelo estilo de direção e abordagem de temas como, problemas sociais e econômicos do país, mas também traz algumas pequenas homenagens como: O protagonismo de Anna Magnani, atriz que deu vida a personagem Pina em “Roma, Cidade Aberta” (Roma, Città Aperta, 1945), de Roberto Rossellini, considerada a primeira heroína deste movimento e, uma curta aparição de Lamberto Maggiorani, protagonista de Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, 1948), de Vittorio de Sica, outro grande clássico do neorrealismo. Curioso é que, em Mamma Roma, Lamberto interpreta um doente em um hospital que tem seu rádio roubado, ou seja, assim como aconteceu em seu maior papel no cinema, novamente protagoniza uma pobre vítima de assalto.
Em uma época que a Itália passava por um período conhecido como milagre econômico italiano, mais precisamente de 1958 à 1963, impulsionado por alguns fatores como, a ajuda dos Estados Unidos com o Plano Marshall, a Guerra da Coréia que aumentou a demanda de metais e outros produtos manufaturados na indústria italiana e a criação do Mercado Comum Europeu, fez com que a economia do país se elevasse de forma considerável, depois de tempos caóticos pós Segunda Guerra Mundial. Com isso, houve grande migração de pessoas que buscavam sair das áreas rurais, rumando para pontos industrializados do país, causando um forte impacto social, e na cultura não seria diferente. A mudança de cenário fez com que cineastas mudassem a abordagem de seus temas, abandonando o movimento neorrealista, que teve sua ascensão após a queda e execução do ditador Benito Mussolini, e agora focando em conflitos psicológicos, dramas existenciais, falso moralismo geralmente ligados à uma realidade burguesa.
Pier Paolo Pasolini integrou esse chamado “pós neorrealismo italiano” ou “segunda fase do neorrealismo“, juntamente com diretores como, Federico Fellini, Luchino Visconti, entre outros (Fellini e Visconti vieram do neorrealismo, e aderiram ao novo movimento de acordo com as mudanças na Itália), mas primordialmente, em sua “primeira fase” como cineasta, com Accattone e Mamma Roma, o agora diretor optou por explorar a realidade de um povo que, mesmo diante da explosão econômica em sua terra, parecia ter ficado de fora desse tal milagre, aparentemente não haviam recebido sua fatia de bolo. Pasolini deu prioridade por mostrar essa população que ainda vivia em situação de extrema pobreza, abaixo da linha da miséria, excluídos, marginalizados, na luta pela sobrevivência na base do cada um por si, para esses em questão, a escalada social até fazer parte do dito milagre, tornara-se uma tarefa árdua e praticamente impossível. Em uma nação que à época recebeu elogios de países europeus e até mesmo dos Estados Unidos, como sendo um exemplo a ser seguido, algo ainda parecia estar muito errado, pois nem todos estavam enquadrados nesse otimismo pregado ou, por mais esperançosos que fossem, alguma situação em sua realidade vinha para contrastar e derrubar seus anseios.
Sendo assim, Mamma Roma, sob a luz e sombra, e iluminação natural, de um excelente trabalho do lendário Tonino Delli Colli, na direção de fotografia, com sua câmera que, ao abrir mão de estúdios e filmar em locações, penetra pelas ruas sujas, vielas, becos, ruínas, periferias, desconstruindo e revelando uma Itália que por diversos motivos estava por ser abafada. Ao som de música clássica do histórico compositor e músico barroco Antonio Vivaldi, com coordenação musical de Carlo Rustichelli, importante musicista italiano do século XX, Pasolini vai rompendo com padrões e estética clássica no ato de conduzir uma obra cinematográfica, diferindo de seus contemporâneos de ofício e fazendo escola ao ditar novas tendências, e claro, polemizando, algo que lhe era de praxe, à vista que sempre tratava de temas delicados, ousados e mal vistos por paladinos da moralidade da época, que o acusavam de perversão.
No centro de todo esse universo desacreditado estão, Ettore, papel muito bem desempenhado por Ettore Garofolo, como o jovem adolescente em transição, em um ambiente estranho, com novos amigos, descobrindo sobre os prazeres sexuais e com dificuldades de relacionamento com sua mãe, que até pouco tempo lhe era ausente. E claro, a protagonista Mamma Roma, em uma atuação monumental de Anna Magnani, algo bem recorrente em sua carreira. Magnani que, nessa altura já era uma atriz agraciada com o Oscar por sua atuação em A Rosa Tatuada (The Rose Tattoo, 1955), de Daniel Mann, encarna com afinco e dedicação a tradicional mama italiana, protetora, afetuosa, espalhafatosa, expressiva, que fala e ri em volumes acima do tom, mas que faz de tudo por sua prole. Essa superproteção levava-a a atitudes de caráter bem duvidosos, porém, o mais importante seria prover seu filho da melhor forma, enquanto tentava recuperar (sem sucesso) o tempo perdido com Ettore. A atriz italiana, como sempre, é digna de aplausos por seu desempenho.
Há coadjuvantes de destaque também como, o gigolô Carmine que não deixava Mamma Roma em paz mesmo após o seu casamento, personagem que é vivido por Franco Citti, ator italiano que se tornou figurinha carimbada em obras de Pasolini; Bruna (Silvana Corsini) uma jovem sem estrutura que passa a maior do tempo nas ruas, com os delinquentes locais e troca “favores sexuais” por presentes e/ou dinheiro; e Biancofiore (Luisa Loiano), um prostituta e amiga da protagonista, que sempre estava disposta a ajudar Mamma Roma, não importando qual fosse o favor solicitado por aquela mãe em desespero. Nesse cenário, não existe heróis e vilões, as atitudes, mesmo que inescrupulosas, tomadas por cada um, não estão ali para serem julgadas, são seres humanos falhos que, ao se darem conta de que faziam parte de uma realidade desesperançosa, a malandragem era o que sobrava em suas questões de subsistência, banhados por um sistema de desumanidade, onde imperava os ideais consumistas.
Antes de sua estreia, Mamma Roma sofreu tentativa de censura, através de uma denúncia acusando a obra de ser ofensiva à moral e aos bons costumes, classificando seu conteúdo como obsceno. A tentativa dos detratores não obteve sucesso e o filme estreou no Festival de Veneza em 31 de Agosto de 1962 e no circuito italiano no mês seguinte. Apesar de escapar dos censores, Pasolini não ficou livre de ataques de movimentos fascistas, ainda existentes no país (até hoje, não só na Itália, mas no mundo todo, infelizmente) que perseguiram seu filme. E como já foi dito, perseguidores foi algo que o cineasta teve em seu encalço desde sempre, até sua morte quando foi vitima de um brutal assassinato, no início de novembro de 1975, crime bárbaro que continua envolto em grande mistério até tempos atuais.
Ao ter sua vida ceifada aos 53 anos de idade, esse brilhante gênio italiano, sem dúvidas o mais polêmico de todos os realizadores que dividiram o protagonismo nas telonas de seu país na época, deixou um legado ímpar, contundente e visionário, antevendo até mesmo, em algumas ocasiões, o que traria a história. Despertando por muito o interesse de intelectuais e estudiosos acerca de seus trabalhos, em sua pós morte. E Mamma Roma segue figurando como um de seus principais trabalhos, filme cheio de relevância e significado, que levanta discussões necessárias e não valendo somente pelo fator “curiosidade” para cinéfilos ao conhecer a história da sétima arte ou do cinema italiano, mas também por seu conteúdo tão atual, que facilmente se adequaria de forma perfeita na sociedade recente, mesmo tendo sido rodado há mais de meio século atrás.
Título: Mamma Roma
Direção: Pier Paolo Pasolini
Ano: 1962
País: Itália
Duração: 106 minutos
Gênero: Drama
Elenco: Anna Magnani: Mamma Roma
Ettore Garofolo: Ettore
Franco Citti: Carmine
Silvana Corsini: Bruna
Luisa Loiano: Biancofiore
Paolo Volpini: Padre
Lamberto Maggiorani: Doente no hospital