“Sim, elas eram diferentes, uma canta, a outra não.
Mas eram muito parecidas,
tinham lutado pela alegria de ser mulher.
Talvez a luta delas possa servir a outras…”
Sempre engajada em lutas sociais, a cineasta belga Agnès Varda (1928 – 2019) colocou seu nome na história, não só por ter sido um dos principais expoentes da Nouvelle Vague francesa, mas também por ser uma artista completa e de talento ímpar. Progressista, feminista e ligada a todo tipo de movimento que envolvesse minorias, trabalhadores, oprimidos e, principalmente mulheres, Varda exerceu sua militância com fervor e dedicação ao longo de quase setenta anos de carreira, entre filmes, exposições artísticas, palestras, curta-metragens e documentários, este último, o mais recorrente em sua filmografia.
Ela gostava mesmo é de estar com sua câmera posicionada onde quer que houvesse um grupo clamando por justiça. Como quando, em 1968, estando ela na Califórnia, com seu esposo e eterno companheiro, o também cineasta Jacques Demy, que na época rodava seu primeiro filme em Hollywood, O Segredo Íntimo de Lola (Model Shop, 1969), ficou sabendo que no município de Oakland acontecia um protesto do Partido dos Panteras Negras contra a prisão de seu líder e co fundador Huey P. Newton. Imediatamente Agnès partiu para o local e, como ela própria dizia, “era apenas uma mocinha com uma câmera 16mm, se infiltrando no movimento, dizendo ser de uma TV Francesa”, recebendo autorização para filmar. Desse episódio nasceu seu documentário Os Panteras Negras (Black Panthers/Huey, 1968).
Discursando sempre pela igualdade, justiça social, se opondo ao machismo e ao patriarcado enraizado na sociedade, os direitos das mulheres sempre estiveram em pauta como prioridade em seus trabalhos. Dando espaço frequentemente ao protagonismo feminino, Varda não media esforços em sua militância em prol ao feminismo, desde o seu primeiro grande sucesso Cléo das 5 às 7 de 1962, até sua derradeira obra, o documentário Varda por Agnès, lançado em 2019, pouco antes de nos deixar, em decorrência de um câncer. A cineasta dialogava com todas, trazendo à tona o seu universo e todas as dificuldades vividas, com os obstáculos a serem superados em um mundo injusto para com elas e, em meio a tantas obras de tamanha relevância, é possível de se dizer que seu maior hino à mulher veio a ser o seu cult feminista de 1977, Uma Canta, a Outra Não.
Estrelado por Thérèse Liotard e Valérie Mairesse, esse belíssimo trabalho da cineasta narra a história de duas amigas, Suzanne (Liotard) e Pauline (Mairesse), a primeira tem 22 anos e dois filhos frutos de um relacionamento com um fotógrafo casado, a segunda, mais jovem com 17 anos, vive com seus pais mas anseia por sua sua liberdade, se tornar uma cantora e viver independente, promovendo sua arte. Uma sincera amizade nasce entre elas, tornando-as inseparáveis por algum tempo, mas após um trágico episódio, cada uma segue seu rumo, se separando. Dez anos depois, as jovens se reencontram em uma manifestação. Agora Pauline seguia sua carreira artística e adotara o nome Pomme, e Suzanne trabalhava com planejamento familiar auxiliando mulheres e cuidava de seus dois filhos que adentravam a pré adolescência. Nesse reencontro, ambas prometem nunca mais perderem contato e se manterem informadas sobre como vai a vida de cada uma. E dessa forma acontece, e através de cartões postais a amizade de Pomme e Suzanne segue, com atualizações sobre a vida das duas, não importando para onde essa levassem-nas.
Rodado na época em que a chamada Segunda Onda do Feminismo circulava pela Europa, simultaneamente ao que também ocorria com o movimento Hippie e da Contracultura e, em um período de algumas conquistas recentes como, o direito contraceptivo em 1972 e o direito ao aborto com até 12 semanas de gestação, em 1975, Agnes Varda não entrega apenas uma narrativa sobre uma singela amizade entre duas jovens, mas também apresenta seu manifesto, cheio de reivindicações, as mesmas que consistia a luta das mulheres naquele contexto. Se na Primeira Onda do Feminismo, datado do início do século XIX e expandindo-se até meados do século XX, foram adquiridos o direito ao voto feminino e direitos à propriedade, por exemplo, em sua sequência as questões prioritárias vieram a ser a desigualdade, oportunidades no mercado de trabalho, sexualidade, direitos sobre o próprio corpo, reprodução, família, ou seja, sua independência em geral. E Uma Canta, a Outra não, foi a forma que a cineasta encontrou para contar essa história.
Como era de praxe no cinema de Varda e no que trouxera da Nouvelle Vague, algumas cenas da película remetem muito a um tom documentarista, incluindo no elenco pessoas locais, habitantes das locações por onde filmavam e atores não profissionais. E em determinados momentos, o filme se torna algo semelhante a um musical, através de Pomme e seu grupo artístico entoando canções compostas pela própria diretora, em parceria com o compositor François Wertheimer e o grupo feminino chamado Orchidée que, além de trabalharem com a trilha sonora, também atuam no filme. Músicas essas que falavam sobre questões como, empoderamento, família, trabalho doméstico, vida conjugal, submissão, patriarcado, maternidade e aborto, todas as questões relacionadas a libertação das mulheres e a seu papel na sociedade.
Sua proposta é discutir e mostrar a mulher em sua essência, seu universo, independente da situação ou para onde a vida as leva ou qual atitude foram tomadas, tão pouco diferenciando se ela é progressista ou conservadora, se anseia pelo matrimônio ou não, se deseja ou não ser mãe, Uma Canta, a Outra não é um ode à todas. Isso se reflete em suas protagonistas, duas mulheres tão distintas: Suzanne fadada à maternidade tão precocemente, tem como prioridade seus filhos, e mesmo sendo uma mãe dedicada, ainda recebe rejeição, inclusive de seus pais, por ser mãe solteira, mas encontra seu espaço na sociedade auxiliando mulheres com planejamento familiar e questões que poderiam ser um tabu na época, e segue levando sua vida de forma mais caseira e tranquila. Já Pauline ou Pomme, com seu olhar penetrante, cachos rebeldes, batendo de frente com todos os padrões impostos, queria viajar pelo mundo, conhecer pessoas, compartilhar seu trabalho artístico, as estradas eram sua alegria, a vida nômade era sua identidade.
Essas diferenças não se tornam nenhum obstáculo entre as duas, muito pelo contrário, é na diversidade que a relação das jovens se fortalece, fazendo surgir um sentimento mútuo, de cumplicidade, uma amizade como poucas, repleta de paz e harmonia a cada reencontro. Mesmo com vidas tão diversas, nenhum lado é assumido pelo roteiro, ambas vivem o que querem viver, e buscam serem donas de si, independente do estilo de vida. É essa a batalha diária travada por Suzanne e Pauline e de tantas outras. Ter o controle sobre sua existência, sobre seu corpo e mente, o direito de ser ou estar e à equidade, sendo elas mesmas as condutoras e construtoras das regras que serão regentes em suas próprias vidas. Agnes Varda conduz tudo isso com tanta paixão, fruto de sua alegria em fazer cinema, sempre precisa e contundente, ainda contando com grandes atuações de Thérèse Liotard e Valérie Mairesse, a bela trilha sonora que se dispõe de canções interessantes e muito bem compostas, e sua perspicaz paleta de cores funcionando para diferenciar os momentos de suas heroínas em cena (tons mais calmos para Suzanne e coloridos para Pomme), de acordo com a personalidade de cada uma, tudo milimetricamente arquitetado pela cineasta.
A própria diretora disse certa vez que, as filmagens de Uma Canta, a Outra não, rendera muitas risadas e momentos de extrema alegria para ela, elenco e toda equipe de produção, e também foi de grande aprendizado. Dizia ela que “se divertiam enquanto lutavam pelos direitos das mulheres” e toda essa energia e felicidade pode ser vista no produto final, esse era seu maior desejo ao realizar a produção. Com sua estréia datada de 09 de Março de 1977, essa pérola lançada no final de uma década tão simbólica, se trata de Agnes Varda em seu apogeu, em sua essência máxima, de uma pessoa que jamais se omitiu, sempre revolucionária e inspiradora como a mensagem que tentava passar. Uma Canta, a Outra não é a artista belga fazendo aquilo que mais gostava, transmitir conhecimento através de sua arte, passar adiante suas experiências vividas em uma vida nada menos que notável.
Informações Técnicas.
Título: Uma Canta, a Outra não (L’une chante, L’autre pas)
Direção: Agnes Varda
Ano: 1977
País: França – Bélgica – Venezuela
Duração: 120 minutos.
Gênero: Drama/Musical
Elenco: Thérèse Liotard : Suzanne
Valérie Mairesse : Pomme (Pauline)
Ali Raffi: Darius
Jean-Pierre Pellegrin: Pierre Aubanel
Robert Dadiès: Jerôme
Mona Mairesse: Mãe de Pomme
Francis Lemaire: Pai de Pomme
François Wertheimer: François