“A Felicidade nem sempre é divertida”
Escrito e dirigido pelo genial e polêmico, Rainer Werner Fassbinder, um dos diretores alemães mais importantes de todos os tempos, O Medo Devora a Alma é um romance lançado em 1974 e estrelado por Brigitte Mira e El Hedi Ben Salem. Com seu roteiro baseado no clássico Tudo que o Céu Permite (All That Heaven Allows, 1955), de Douglas Sirk, Fassbinder transporta sua “história de amor” de um cenário norte americano da obra original, para a Alemanha da década de 1970, em um país de contexto deveras conturbado pós segunda guerra, ainda juntando os cacos, dividido em duas partes devido à Guerra Fria (Alemanha Ocidental e Alemanha Oriental) e, trazendo à tona questões como, preconceito, racismo e xenofobia.
Remetendo aos melodramas “sirkianos” dos anos cinquenta, Fassbinder nos apresenta a sua protagonista, Emmi (Brigitte Mira), uma senhora de sessenta anos, viúva, faxineira e quase esquecida pelos filhos, que ao adentrar um bar em Munique em uma noite chuvosa, conhece Ali (El Hedi Ben Salem), um rapaz negro, marroquino, muçulmano e vinte anos mais jovem do que ela. Após uma dança, o casal se conhece melhor, passam a noite juntos, se apaixonam e começam um namoro. Esse relacionamento desperta a ira dos filhos de Emmi e todo o preconceito das pessoas ao seu redor, que a partir daí, passam a tratá-los com hostilidade, submetendo o sofrido e solitário casal a todo tipo de desprezo, e olhares atravessados de reprovação de conhecidos e estranhos, deixando ambos cada vez mais isolados, em uma sociedade hipócrita e desumana.
O cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder, além de trabalhar como diretor, também exerceu funções como: ator de teatro e cinema, cinegrafista, compositor, editor, produtor e administrador de teatro. Além da multifuncionalidade, era dono de um talento impressionante, se dividindo em diversas frentes e, mesmo com uma vida pessoal conturbada, com relacionamentos destrutivos e excessivo uso de drogas, ainda conseguiu rodar cerca de 43 filmes, em uma curta carreira que durou menos de 15 anos, até sua morte prematura aos 37 anos de idade, vítima de uma overdose. Fassbinder integrou o Novo Cinema Alemão, um movimento de retomada da sétima arte no país germânico, que começou a ver a luz do dia com o chamado “Manifesto de Oberhausen”. Este, um tratado assinado por 26 jovens cineastas alemães em 1962, com o objetivo de rumar a novos horizontes cinematográficos, com novas bases ideológicas, rompendo com o velho cinema alemão, tão comprometido e corrompido durante décadas com sua associação ao nazismo. O principal intuito dos realizadores, seria rodar obras mais realistas, mostrando o povo nas ruas, a situação econômica e política do país, expondo, mesmo que difícil, a mais pura realidade.
O cinema alemão, outrora, tão influente no cenário mundial, com seu Expressionismo e cineastas revolucionários, veio a ficar quase fadado ao ostracismo com a ascensão do Partido Nazista, culminando com o exílio de diversos realizadores, atores e atrizes, entre outros, que fugiam do autoritário regime de Hitler. Nesse período, o cinema do país era regado por filmes propaganda de guerra e, mais tarde, comédias, filmes de puro entretenimento, com temas leves e totalmente aleatórios à realidade, desviando o foco da iminente derrota. Com a assinatura do manifesto de Oberhausen, uma revolução teve início, seria uma nova era para o cinema da Alemanha. Contando com o apoio do governo que liberava incentivos para a realização das novas produções e, com jovens diretores talentosos surgindo no cenário como, além de Fassbinder, Wim Wenders, Edgar Reitz, Alexander Kluge, Volker Schlöndorff e Werner Herzog (que não se considerava membro do movimento, mas sempre teve sua imagem associada a este e, de fato, era um grande simpatizante e entusiasta), o Novo Cinema Alemão colocou o país novamente no mapa cinematográfico, alcançando seu auge na década de 1970.
Em 1971, Fassbinder assistiu em uma retrospectiva, uma série de filmes de seu conterrâneo Douglas Sirk e resolveu conhecê-lo pessoalmente. Depois desse encontro de dois gênios, a influência de Sirk e seu melodrama sobre a obra do jovem cineasta se tornou clara e evidente, Fassbinder rompeu com seu estilo mais cult do início da carreira, com influências de Jean-Luc Godard e a Nouvelle Vague e, procurou realizar projetos mais acessíveis ao grande público mas sem perder sua essência. Sua primeira realização nessa nova empreitada foi lançada em 1972 com o título “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant (Die bitteren Tränen der Petra von Kant), baseada em uma peça teatral de sua própria autoria, obra que rendeu-lhe o primeiro sucesso internacional. E em 1974, entre quatro filmes rodados por ele neste ano, nasceu a maior homenagem a seu grande mentor, o triste e contundente O Medo Devora a Alma.
Rodado em um curto período de menos de duas semanas, essa obra tão relevante, comovente e crítica, disfarçada de romance, traz à tona problemas políticos e sociais em uma singela história de amor cheia de tabus a serem quebrados. O ódio desperto nos demais ao se depararem com o relacionamento de Emmi e Ali, configura o preconceito já enraizado na cultura ocidental em relação a imigrantes, negros e muçulmanos. Como o filme é ambientado na cidade de Munique posterior ao atentado terrorista promovido durante os Jogos Olímpicos de 1972, essa aversão aos imigrantes advindos do Oriente Médio se potencializou ainda mais, como o próprio Ali tenta explicar em um determinado momento da projeção, em que fala sobre suas dificuldades, durante uma conversa com Emmi. O terrorismo citado, conhecido como o Massacre de Munique, foi causado pelo grupo palestino denominado Setembro Negro contra a equipe olímpica de Israel, totalizando em um saldo de 17 mortes, sendo o maior atentado ocorrido durante um evento esportivo.
Brigitte Mira, atriz já veterana, atuante desde a década de 1940, com altos e baixos e controvérsias em sua carreira e, El Hedi Ben Salem, ator e imigrante marroquino, parceiro frequente do cineasta, ambos merecem uma menção de destaque em suas atuações, ao desempenharem de forma louvável seus papéis tão complexos. Aliás, Salem não só foi parceiro de Fassbinder de forma profissional, como também, a dupla manteve um relacionamento amoroso durante anos, relação essa, que acabou de maneira bem conturbada pelo temperamento explosivo do ator (Fassbinder também não devia nada nesse aspecto). Durante o período em que viveram juntos, Salem trouxe seus dois filhos do Marrocos, onde moravam com sua ex- esposa, para a Alemanha e, ao que se sabe, a família sentiu na pele o sofrimento devido ao preconceito da sociedade alemã para com eles. Sociedade, principal alvo das críticas de Fassbinder, não só em Angst Essen Seele Auf, mas em diversos trabalhos ao longo de sua frutífera carreira.
Além de assinar a direção, produção e roteiro, Rainer também deixa sua marca atuando no papel de Eugen, genro de Emmi, casado com sua filha Krista (Irm Hermann). Seu personagem é a personificação da hipocrisia do dito “cidadão de bem”, com discurso conservador e (falso) moralista, debruçando-se na religião, ou melhor, na distorção desta (Fassbinder faz questão de enquadrar em uma cena, ele sentado à mesa e, ao fundo, podemos ver uma imagem de Jesus crucificado, enquanto Eugen destila toda sua ignorância), sendo na realidade um sujeito que não passava de um ser raivoso, maltratando a esposa, bebendo o dia todo, preconceituoso, racista, xenofóbico, machista, dando ordens à sua cônjuge como se fosse sua escrava. E além de Fassbinder, sempre dando o ar da graça, desempenhando algum papel em suas próprias películas, outros atuantes na obra também eram frequentes colaboradores e figurinhas carimbadas em seus projetos como, Irm Hermann, Lilo Pempeit, Barbara Valentin, Karl Scheydt, Marquard Bohm, Kurt Raab, entre outros.
Cenas como, Emmi e Ali sentados, sozinhos, na pequena e apertada cozinha de seu apartamento, mostrado como um ambiente claustrofóbico, ou outro momento, em um lanchonete, novamente isolados, com funcionários do estabelecimento, olhando-os à distância, com comentários maldosos, cheios de reprovação, denotando o calvário, o sufocamento e abandono desse penoso casal, fazem parte do brilhante e minucioso trabalho de Fassbinder, com sua câmera precisa e acusadora. Em um cenário tão vil com os dois apaixonados, pessoas que em determinados momentos lhe eram hostis, outrora mudam a forma de tratamento ao verem a possibilidade de tirar proveito de Ali e sua força física, atribuindo ao marroquino tarefas pesadas, que eram pedidos em forma de favores amigáveis. Para os amantes (principalmente Emmi), aquilo poderia ser uma forma de aproximação dos demais, quando na verdade, nada mais era do que conveniência daqueles que o rodeavam e a forma com que eles enxergavam Ali, tal qual um serviçal, um ser inferior, pautado pela força bruta.
Mas Fassbinder faz questão de não “fantasiar” seu romance, tratando-o como vida real, Emmi e Ali são dois seres humanos falhos, não se trata apenas de uma história de amor, onde ambos superam todos os desafios e “vivem felizes para sempre”, longe disso. O casal tem seus problemas, a mulher, em determinado momento, passa a se vangloriar de seu esposo, mostrando à suas amigas invejosas os atributos de Ali, chegando até o ponto de deixá-las tocar seus músculos, para perceberem sua força, ou seja, da mesma forma que os demais, apresentando-o como um produto. O marido, por sua vez, passa a trair sua esposa com uma mulher bem mais nova, de idade parecida com a dele, deixando o relacionamento bem desgastado, turbulento e prestes a ruir. A questão é, essas duas pessoas sofridas, oprimidas pela sociedade, seriam capazes de superar os desafios de uma relação, convivendo ainda em um mundo que os escanteia, que não os aceita, que demoniza o afeto entre eles? Ambos teriam força de encarar essa dura realidade e superar esse medo que, segundo Ali, devora a alma?
Angst Essen Seele Auf teve sua estreia na Alemanha Ocidental em 05 de Março de 1974, sendo aclamado pela crítica especializada e se tornando um grande sucesso. Além de receber o prêmio da Federação Internacional dos Críticos de Cinema, também saiu vitorioso no Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Cannes daquele ano. Em uma época de polarização mundial, com o ocidente sempre a temer e se preparando para o combate contra aqueles que eram tidos como inimigos, ao lado leste da Cortina de Ferro, o cineasta alemão deixa exposto que, por aqui em terras ocidentais, as coisas não iam tão bem assim, as questões sócio-políticas encontravam-se conturbadas, o cenário era caótico, com uma sociedade desigual e cheia de intolerância. Não que o diretor quisesse defender um lado, tecendo críticas ao outro, não era esse seu intuito, até porque durante toda sua filmografia Rainer revisitou todas as classes sociais e filmou em diversas regiões e situações de seu país, expondo todos os problemas, traçando um perfil da Alemanha, botando o dedo na ferida, independente de base ideológica.
Tido merecidamente como uma obra prima, O Medo devora a Alma segue atualíssimo, trazendo reflexões e encaixando perfeitamente, ainda, em nossa realidade em pleno século XXI. Não só é um dos filmes mais relevantes de seu realizador, como também pode fazer parte daquela lista de “filmes obrigatórios” para qualquer cinéfilo que queira compreender um pouco mais sobre a história da sétima arte. Triste, comovente, crítico, perverso, visceral, pertinente, atuações notórias, excelente roteiro, conduzido com maestria e rodado em tão pouco tempo, não sendo isso um defeito, traduzindo, um Autêntico Fassbinder.
Informações Técnicas.
Título: O Medo devora a Alma (Angst Essen Seele Auf)
Direção: Rainer Werner Fassbinder
Ano: 1974
País: Alemanha
Duração: 94 minutos.
Gênero: Drama/Romance
Elenco: Brigitte Mira: Emmi Kuroswki
El Hedi ben Salem: Ali
Irm Hermann: Krista
Lilo Pempeit: Sra. Münchmeyer
Barbara Valentin: Barbara
Elma Karlowa: Sra. Kargus
Anita Bucher: Sra. Ellis
Gusti Kreissl: Paula
Hark Bohm: Médico
Rainer Werner Fassbinder: Eugen, marido de Krista
Karl Scheydt: Albert Kurowski
Marquard Bohm: Gruber
Kurt Raab: Mecânico de automóveis
Walter Sedlmayr: Angermayer
Rudolf Waldemar Brem: Mecânico