“Eu achava que todo mundo olhava
para mim. Só eu olho para mim”
Escrito e dirigido pela genial cineasta belga Agnès Varda e estrelado de forma brilhante por Corinne Marchand, Cléo das 5 às 7 é um clássico do cinema francês, lançado em 1962. É sempre lembrado como um dos principais expoentes da Nouvelle Vague, importante movimento artístico da França, que fora conduzido por alguns realizadores e jovens idealistas que viriam a figurar entre os principais artistas do país.
Em sua trama, Florence (Corinne Marchand), uma popular cantora conhecida como Cléo (referência à Cleópatra), aguarda o resultado de uma biópsia que irá constatar se ela tem câncer ou não. Ao visitar uma cartomante, sua agonia aumenta, visto que as cartas previam nada muito agradável, e a jovem entra em um estado de inquietação e desespero. Assim, acompanhamos a trajetória de Cléo, e seu passo a passo, em tempo real e de forma ininterrupta, em um período de noventa minutos, vagando pelas ruas de Paris, interagindo com pessoas conhecidas e desconhecidas, com quem compartilha suas angústias, seus temores, enquanto espera pela notícia que irá definir os rumos de sua vida.
A diretora, roteirista, fotógrafa, artista e feminista Agnès Varda, nasceu em Ixelles, uma comuna na região de Bruxelas na Bélgica, no ano de 1928. Seu nome de batismo era Arlette Varda, mas o mudou legalmente para Agnès ao completar dezoito anos de idade. Radicou-se na França, onde cursou Literatura e Psicologia, mas sua paixão mesmo era a Fotografia, curso que decidiu estudar posteriormente. Quando começou sua carreira profissional, Varda fotografava famílias, casamentos e situações triviais para ganhar dinheiro, e posteriormente se tornou fotógrafa de palcos, trabalhando em teatros. Inspirada pelo seu trabalho fotográfico, resolveu embarcar na sétima arte, mesmo sem nunca ter estudado cinema ou sequer trabalhado como assistente, e em 1954 lançou seu primeiro longa metragem, La Pointe-Courte.
Seu filme de estreia, contava a história de um casal infeliz, à beira da separação, confrontando seus sentimentos e analisando seu relacionamento, ambientado na pequena cidade pesqueira francesa de La Pointe-Courte, que dá nome ao filme. Varda utilizou como protagonistas dois atores profissionais, Silva Monfort e Philippe Noiret, mas contou com a participação dos moradores da comunidade, mostrando o cotidiano dos pescadores, para deixar a obra mais realista. Seu estilo documental chamou a atenção da crítica especializada, pelo seu rompimento com a estética padrão e clássica, trazendo uma forte referência do neorrealismo. Agnès sempre optou por filmar em locações, sendo uma das pioneiras nesse quesito, em tempos de época de pouca tecnologia, quando seria mais viável gravar em estúdios.
Mesmo se lançando ao cinema, Varda manteve seu trabalho como fotógrafa no Teatro Nacional até o ano de 1961 e trabalhando como fotojornalista por todo solo europeu. Até o fim dos anos 1950 e início da década seguinte, dirigiu alguns curta metragens, entre eles, A Ópera-Mouffe (L’opéra-Mouffe, 1958) e, Os Amantes da Ponte Mac Donald (Les Fiancés Du Pont Mac Donald, 1961), este, estrelado por Anna Karina e Jean-Luc Godard. Paralelo a isso, Agnès via o surgimento de um movimento cinematográfico impulsionado por jovens cinéfilos e críticos de cinema, a Nouvelle Vague. Que tinha como principais entusiastas nomes como, o já citado Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Claude Chabrol, entre outros. E alguns traços que definiram esse novo conceito de se fazer cinema, encontrava-se características utilizadas pela cineasta belga em seu filme de estreia, podendo se dizer que, Agnès Varda não foi a criadora da Nouvelle Vague, mas plantou a semente lá em 1954.
Com o novo movimento se consolidando cada vez mais, sendo recebido com entusiasmo pela crítica e público, não só na França, mas em toda a Europa, a cineasta belga começou a trabalhar no roteiro de seu segundo longa metragem, Cléo das 5 às 7. Como o orçamento da produção era baixo, ela optou por filmar a obra toda em Paris, assim, evitando viagens e gastos, e fazendo o que mais gostava, filmar o povo nas ruas. Mas Agnès Varda não só agregou novas técnicas estéticas e narrativas, como também foi pioneira ao introduzir o feminismo ao cinema. É sabido que a diretora sempre foi uma ativista feminista, e retratou isso de diversas formas, seja em documentários ou obras fictícias, e também indo às ruas lutar pelos direitos das mulheres, dando voz à elas, em uma época em que a imensa maioria dos estúdios priorizava protagonistas masculinos. E Varda retratava a mulher de verdade, não a idealizada sob uma ótica masculina, a mulher ser humano, com seus problemas reais, angústias, neuroses, particularidades, sofrida devido ao papel que a sociedade lhe impunha, fruto de um patriarcado tão arcaico, Agnès dialogava com todas.
Em Cléo, vemos uma protagonista desacreditada por aqueles que a rodeiam, sempre com descaso em relação a seus sentimentos. A jovem que sofria com a angústia da espera pelo resultado de seus exames, via-se diante de pessoas que não a levavam a sério, e que seu sofrimento nada mais era que uma menina mimada clamando por atenção. Cantora famosa, cercada de mimos, regalias, com (quase) tudo a seu alcance, sempre tratada como criança, Cléo, para todos, resumia-se à beleza e fama. Ela própria, vivendo nessa realidade, acreditava que conseguiria tudo, simplesmente, por ser bonita, a ponto de dizer em determinado momento, se olhando ao espelho “Enquanto eu for bonita, estarei viva”, entendendo que, como a morte é uma coisa feia, sua beleza era um sinal de vida. E ainda, sempre objetificada, ficava sujeita à cantadas idiotas de homens pelas ruas. Aos poucos, Cléo mostra-se cada vez mais incomodada com a indiferença de seus próximos, em especial, sua dedicada assistente pessoal Angèle (Dominique Davray), seu amante (José Luis de Vilallonga), e os dois músicos com quem ela trabalhava, Plumitif, o letrista (Serge Korber) e Bob, o pianista (Michel Legrand).
O músico, compositor, pianista e regente Michel Legrand, não só atua, mas também assina a trilha sonora do filme, assim como também, foi responsável pelas músicas de alguns clássicos do cinema francês. E com ele em cena, acontece uma das passagens mais marcantes de toda a obra, quando Bob e Plumitif vão até à casa de Cléo para ensaiarem uma nova música em que trabalhavam. Os dois músicos também zombavam da angustiada cantora, e Bob fazia piadas frequentes, irritando-a. Neste ensaio, ocorre o único número musical da projeção, quando Cléo interpreta a canção “Sans Toi” de forma comovente, e podemos ver todo seu talento e a potência de sua voz. A música afeta por demais sua intérprete, por exprimir, coincidentemente, todos os seus sentimentos vividos naquele dia de agonia, e enquanto ela canta, a câmera foca totalmente na expressão de seu rosto cheio de emoção, em uma sequência grandiosa.
Não podendo mais levar o ensaio adiante, Cléo abandona a todos em sua residência e vai para as ruas espairecer um pouco, assim começa sua jornada interior. Agora, a partir deste ponto, deixa de ser Cléo, a cantora, e torna-se Florence, a mulher. Durante seu trajeto sem um rumo específico, a protagonista caminha entre alguns transeuntes interessantes, desinteressantes, artistas de rua, pessoas em sua rotina diária de trabalho. Alguns a reconhecia e os olhares eram inevitáveis, tratava-se de uma pessoa famosa, mas ninguém a enxergava de verdade, talvez, nem ela tivesse feito isso até aquele momento. Agora, se olhar ao espelho, já não era mais motivo para contemplação como outrora, sua expressão no reflexo de sua imagem mudara completamente, nada daquilo ao que foi exposta à vida toda ajudaria a amenizar sua dor. Claro que, perambular pela cidade não lhe traria todas as respostas, tampouco mudaria o vindouro resultado de seus exames, principal motivo de sua inquietação, mas talvez lhe desse um pouco de paz, talvez encontrasse, em sua “caminhada de descobrimento” um sentido para sua vida, ou uma forma de aproveitar o tempo restante, caso estivesse doente, de fato.
Durante a década de 1940, em uma França pós Segunda Guerra Mundial, o Existencialismo se fomentaria cada vez mais no cenário artístico, abrangendo a literatura, filosofia, teatro e cinema, estendendo-se até a década de 1960. Em Cléo das 5 às 7, além de se discutir temas como o feminismo, o papel da mulher na sociedade e o patriarcado, questões existencialistas também são frequentemente colocadas em pauta, mas Agnès Varda notabilizou-se por saber lidar com temas como esse de uma forma leve, mérito total de seu excelente trabalho como roteirista, e seu script regado por ótimos diálogos, que conduzem brandamente sua obra, de um jeito simples (nunca simplório) sem perder a seriedade em momento algum. E Corinne Marchand, no palco central de tantas discussões relevantes, desempenha Florence/Cléo de maneira impecável, com sua angústia, dramaticidade, por vezes vulnerável, por vezes mimada, outrora decidida e sempre com sua feminilidade, a atriz francesa brilha no maior papel de sua carreira.
Mesmo com o filme todo centrado no drama de sua protagonista, há espaço também para alguns coadjuvantes de destaque, além do já citado Bob, o pianista, personagem de Michel Legrand, que soa como um alívio cômico da projeção, há de se exaltar a motorista de táxi, vivida por Lucienne Marchand, uma mulher forte e determinada, que durante o trajeto em que conduzia Cléo e Angèle para casa, conta sua história e suas dificuldades na vida de taxista, com os perigos da cidade, enfrentando todos os tipos de adversidades. Essa cena que leva alguns minutos (lembrando que o filme decorre passo a passo, minuto a minuto na trajetória de Cléo) é bem significativa, pelo foco serem três mulheres dentro de um carro, conversando sobre assuntos aleatórios e cotidianos, denotando a forte presença feminina e toda representatividade que Agnès Varda desempenhava.
Há também Antoine (Antoine Bourseiller), um soldado francês com quem Cléo interage, e que também vive uma agonia pela ansiedade da iminente volta ao exército para lutar na guerra da Argélia. Florence se afeiçoa a Antoine, um sentimento recíproco, e a conversa flui entre os dois ao discutirem sobre questões de sua existência, ambos estão prestes a darem passos que mudarão completamente seus rumos, e no caminho dos dois jovens, a morte era um medo frequente. E por falar em coadjuvante, é interessante notar a abordagem da cidade de Paris, que dispensa todos os cartões postais parisienses, filmando em locais desconhecidos, adentrando a Cidade Luz, como nunca vista antes. Tudo isso sob a bela direção de fotografia de Jean Rabier, Paul Bonis e Alain Levant, aliás, fotografia de qualidade era uma exigência da comandante do projeto, uma expert no assunto.
E por falar em expert, uma das maiores especialidades de Varda sempre foi o documentário e, consequentemente, a cineasta adorava mesclar fatos documentais quando dirigia ficção, e encaixar ficção quando lidava com a realidade. E em Cléo, além da ênfase dada às ações das pessoas nas ruas, o contexto histórico da época se faz presente com proposital frequência, e em determinados momentos ficamos a par de algumas notícias do mundo como, por exemplo: Nas rádios comenta-se sobre a Guerra da Argélia (Antoine também fala sobre isso) e a situação desse conflito sangrento que, posteriormente, culminou com a independência do país africano, se livrando do domínio francês. Também escutamos algo sobre a Convenção de Viena, reunião realizada em 1961, entre o presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy e o primeiro ministro da União Soviética, Nikita Khrushchev, tendo em pauta a relação entre as duas nações no auge da Guerra Fria, e ficamos sabendo sobre o estado de saúde da icônica e histórica cantora Édith Piaf (responsável pela belíssima e clássica canção La Vie en Rose, entre outras), que viria a falecer em 1963, vítima de câncer no fígado. Dessa forma, a realizadora belga expunha que sua protagonista, apesar de ser uma personagem fictícia, seu mundo, seus problemas e sentimentos eram reais, seu universo era o mesmo que o nosso.
Cléo das 5 às 7 teve lançamento mundial no dia 11 de abril de 1962, se tornou grande um sucesso e, consequentemente, configurou-se como a obra máxima de Agnès Varda, que se consagrou como uma das figuras mais importantes da Nouvelle Vague e do cinema francês. Subsequentemente, Agnès manteve-se fiel a seu estilo e aos ideais feministas e, entre filmes, documentários e exposições, continuou exercendo seu ativismo, sempre engajada em causas sociais e defendendo o direito das minorias. E principalmente, realizando trabalhos de importância ímpar às mulheres, como já citado, dialogando com todas, dando à elas o merecido e devido espaço, servindo de inspiração para gerações.
Varda foi uma daquelas pessoas essenciais, que vêm ao mundo para iluminar, “fazer barulho”, revolucionar, dar voz quem precisa e, fazendo isso através de sua arte, essa brilhante artista belga foi digna de uma carreira de mais de seis décadas, até sua morte aos noventa anos de idade, em 28 março de 2019, vítima de um câncer. E sua magnum opus de 1962, resume bem o que viria a significar Agnes Varda para a nossa tão querida sétima arte, pois Cléo preenche requisitos necessários para uma obra prima: Qualidade e inovações técnicas e narrativas, um roteiro esplendoroso, atuação exuberante de sua protagonista, coadjuvantes bem desenvolvidos e a relevância em temas tão importantes em que se propõe a discutir.
Informações Técnicas.
Cléo das 5 às 7 (Cléo de 5 à 7)
Direção: Agnès Varda
Ano: 1962
País: França/Itália
Duração: 90 minutos.
Elenco: Corinne Marchand …. Florence, ‘Cléo Victoire’
Antoine Bourseiller …. Antoine
Dominique Davray …. Angèle
Dorothée Blank …. Dorothée
Michel Legrand …. Bob, o pianista
José Luis de Villalonga …. o amante
Loye Payen …. Irmã, a cartomante
Renée Duchateau
Lucienne Marchand .… a motorista de táxi
Serge Korber …. Plumitif
Robert Postec …. Doutor Valineau