- “Ela não fala francês?
- Não, mas o entende.
- Por instinto, suponho.
- Então… como os animais…”
Trazendo consigo uma forte crítica social, conflitos de classe, trabalho escravo, racismo e colonialismo, A Negra de… é um importante filme senegalês, lançado em 1966, dirigido e roteirizado por Ousmane Sembene, e baseado em um conto do próprio cineasta, que também foi um grande escritor em sua terra natal.
No longa, acompanhamos a penosa trajetória de Diouana (Mbissine Thérèse Diop), uma jovem negra, moradora de um bairro pobre em Dakar, capital do Senegal, que a convite de seus patrões, deixa seu país rumo à França, onde continuaria seu trabalho como babá dos filhos de seus empregadores. Chegando em Antibes, comuna francesa às margens do Mar Mediterrâneo, a pobre mulher passa a sofrer com o trabalho praticamente escravo e o tratamento recebido de seus superiores e membros da alta classe média, círculo social ao qual ela era obrigada a servir. Logo sua idílica ideia sobre uma melhoria de vida em território europeu vai se esfacelando, e sua visão apaixonada sobre o “país do amor” se torna uma completa desilusão.
O cineasta e escritor Ousmane Sembene (1923 – 2007), frequentemente considerado o “Pai do Cinema Africano”, começou sua carreira artística na literatura, mas antes disso, desempenhou diversos trabalhos na adolescência como pescador, operário de ferrovia, mecânico e militar. Nessa última função, participou de campanhas na França e Itália, combatendo o nazismo e fascismo, e após o término da Segunda Guerra Mundial, começou a trabalhar como estivador nas docas da cidade de Marselha. Vendo as condições precárias que ele e seus companheiros de ofício enfrentavam, passou a se engajar em causas sociais e trabalhistas, se tornando um ativista sindical e lutando pelos direitos dos trabalhadores.
Em 1950, Sembene se filiou ao Partido Comunista Francês, onde manteve-se ativo em sua militância, até a independência de Senegal no início da década seguinte. A partir de 1956 passou finalmente a se dedicar às artes literárias, publicando quatro livros (três romances e um livro de contos) em um intervalo de seis anos, sendo eles: Le Docker Noir, 1956; O Pays, Mon Beau Peuple!, 1957; Les Bouts de Bois de Dieu, 1960 (considerado pelos críticos sua obra máxima); e Voltaïque, 1962. Este último, consiste em uma coleção de contos do escritor, e entre eles encontra-se La Noire de…, que futuramente daria origem ao filme. Sua terceira obra publicada, Les Bouts de Bois de Dieu, que narrava a história de uma greve de trabalhadores ferroviários da linha Dakar-Níger, além de ter sido seu trabalho mais elogiado como romancista, tornou-se também muito importante devido ao contexto histórico, por sua publicação no mesmo ano em que Senegal se tornaria uma nação independente.
Mesmo consolidado como um grande escritor, Ousmane Sembene queria mais, ansiava que sua arte alcançasse o grande público, chegando às massas, e encontrou na sétima arte o melhor caminho. Sendo assim, partiu rumo à União Soviética para estudar cinema na Gorky Film Studio em Moscou, entre 1962 e 1963. Após concluir os estudos, lançou dois curta metragens, Barom Sarret, ainda em 63, e Niaye, em 1964. Barom Sarret, curta com dezoito minutos de duração, ilustra a pobreza na África, através dos olhos de um carroceiro tentando ganhar a vida em Dakar. Este trabalho é considerado o primeiro filme realizado no continente conduzido por um africano negro. Com dois curtas em seu currículo, o agora cineasta Ousmane Sembene embarcou no projeto que viria a ser o seu primeiro longa metragem, A Negra de…, filme que lhe traria também a merecida notoriedade em sua nova função.
Rodado na França e Senegal, La Noire de…, além de ter sido primeiro longa de Sembene, também marcou a estreia da jovem atriz Mbissine Thérèse Diop, que na época tinha dezessete anos de idade. Diop nunca teve interesse em fazer cinema, sendo sempre bem atuante no setor têxtil, inclusive trabalhando como costureira, e foi através de influências de amigos que a levou a considerar a carreira cinematográfica. Aos dezesseis anos começou a estudar na Escola de Artes de Dakar, e após ser fotografada para um ensaio, Ousmane Sembene a descobriu e entrou em contato, com o convite para protagonizar seu novo projeto. De início, Diop esteve relutante, mas acabou aceitando, o que causou revolta em sua família que não queria seu envolvimento com artes cênicas.
Seu papel como protagonista veio carregado de grande responsabilidade, visto que, toda a obra é centrada de forma integral em sua personagem, a pobre Diouana. E alternando, com flashbacks, um passado recente da jovem ainda vivendo em Dakar, e o presente, já com sua vida praticamente de escrava na França, Sembene discute temas como o racismo e as consequências da colonização européia sobre solo africano. Mesmo que na época da produção, Senegal fosse uma nação livre, ainda colhia amargos frutos de séculos e séculos de exploração por conta de seus colonizadores e invasores escravagistas. A bem da verdade, diversas nações ainda sofrem as consequências em dias atuais.
Apesar de se tratar de um filme com uma duração bem moderada de apenas sessenta minutos, o curto tempo de projeção não é nenhum empecilho, e há espaço para desenvolver todo o ponto de vista de Sembene e a contundência de suas críticas, lançadas em tela aos olhos de Diouana, que vai narrando toda sua trajetória desde sua chegada à Antibes, passando por sua vida em sua terra natal. Aos poucos vamos acompanhando a imigrante senegalesa enxergando, da forma mais árdua, como havia sido enganada pelo casal de franceses que a contrataram. A jovem que foi empregada com o objetivo de cuidar das crianças em Dakar, de início teve um ótimo tratamento por parte de seus patrões, que até lhe deram presentes, como roupas usadas de sua patroa. E assim ela vai se encantando cada vez mais com a promessa de uma vida melhor, ao ser convidada a morar na França, e conseguir finalmente dar uma vida digna à sua família que ficaria no Senegal.
A partir daí, as verdadeiras faces vão se exibindo, os traços do colonialismo e todo tipo de preconceito demonstrado de todas as formas. Diouana sendo obrigada a realizar todos os serviços domésticos, como uma verdadeira serva, exposta a qualquer tipo de racismo e xenofobia, em cenas onde ela é comparada aos animais pelos amigos de seus “donos”, e situações constrangedoras, como determinado momento em que um desses deploráveis convidados do casal francês, assedia a jovem com o argumento: “posso te beijar? Eu nunca beijei uma negra”. Mas claro, como todo “cidadão de bem”, seus patrões tentavam demonstrar que faziam o melhor pela serviçal, mesmo que sugassem toda a vida da jovem senegalesa. As relações de trabalho e poder, e a forma desumana como o povo africano era visto por outros povos (nesse caso, os europeus) vão ficando cada vez mais evidentes.
E a pobre empregada submetida a todos os maus tratos, reprimia seus sentimentos, sofria calada, como se não tivesse voz ativa, não tinha mais o controle de ser ou estar. Os únicos momentos em que ela mostrava sua personalidade, com certo ar de empoderamento, era quando vestia suas melhores roupas, vestidos, brincos de girassol, salto alto. Vestimentas essas que só davam para ser usadas durante os afazeres, e mesmo assim era reprimida pela patroa que exigia o uso de um avental e a não utilização dos sapatos. E assim a moça seguia sua rotina claustrofóbica, sem tempo para nada, só o trabalho, sem lazer e diversão, sem conhecer ou interagir com pessoas novas (e agradáveis) e com a França sendo para ela, nada mais, nada menos, do que o espaço limitado entre a cozinha, lavanderia e seu quarto, este último, um lugar onde podia descansar depois de um dia de exploração, ou seja, como se fosse uma senzala moderna.
Além do roteiro preciso de Sembene, e a grande atuação de Thérèse Diop, há de se enaltecer como outro grande acerto da projeção, a opção por filmar em preto e branco. Mérito do belíssimo trabalho realizado pelo diretor de fotografia Christian Lacoste, que se utiliza das cores (ou da ausência delas) para denotar a opressão sofrida por Diouana, ao destacar sua pele negra em um ambiente todo pálido, sem cor, tudo ao seu redor era branco, todos os indivíduos eram brancos, um universo anêmico que parecia cada vez mais engolir sua existência. Talvez, ou com certeza, esses fatores justifiquem as reticências existentes no título da obra, “A Negra de…”, de onde? pertence a quem? pertence a qual lugar?
O lançamento de A Negra de… em 1966, chamou a atenção da crítica e público, que voltaram os olhos para o cinema africano, que ainda engatinhava mas já se mostrava relevante. O sucesso da obra abriu as portas para o cineasta senegalês realizar novos projetos, inclusive rodando filmes posteriores como Xala (1975), Ceddo (1977), Camp de Thiaroye (1987) e Guelwaar (1992), falados no idioma Wolof, sua língua nativa. E mesmo comprometido com o cinema, Sembene jamais abandonou a literatura, se dividindo em duas funções, mantendo-se sempre fiel ao seu estilo, com críticas sociais, enaltecendo a cultura de seu povo, rompendo barreiras e fazendo com que a voz de sua gente ecoasse aos ouvidos do mundo.
La Noire de… além de vencer o Prêmio Jean Vigo, importante premiação da França, se tornou um marco para o cinema de Senegal, sendo considerado o primeiro longa metragem realizado na África subsaariana (ao sul do Deserto do Saara), e somando-se a isso, todo o contexto histórico, político e cultural já citado, fazem desse brilhante trabalho de Ousmane Sembene uma verdadeira obra prima, de importância ímpar para as artes cinematográficas em solo africano.
Informações Técnicas.
A Negra de… (La Noire de… – 1966)
Direção: Ousmane Sembene
Ano: 1966
País: Senegal / França
Duração: 60 minutos
Elenco: Mbissine Thérèse Diop: Diouana
Anne-Marie Jelinek: Madame
Robert Fontaine: Monsieur
Nicole Donati: Jovem convidada
Suzanne Lemeri: Velha convidada
Ousmane Sembene: O professor