Pular para o conteúdo

Café Arcaico | Vá e Veja

E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem, e vê.

E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra, com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra.

Apocalipse 6:7,8

Dirigido por Elem Klimov, Vá e Veja (Idi i Smotri) é um filme de Drama/Guerra soviético, lançado em 1985, e trata-se de um dos retratos mais cruéis e chocantes sobre a Segunda Guerra Mundial.

Com roteiro escrito por Ales Adamovich em parceria com Klimov, a trama tem como cenário vilarejos da Bielorússia, e a incursão nazista naquele território, no ano de 1943. Acompanhamos tudo através do olhar de Florya (Aleksey Kravchenko), um adolescente de treze anos, que vivia com sua mãe e duas irmãs. De início, o garoto brincava de guerra, e ao encontrar uma arma enterrada na areia da praia, resolve se juntar às milícias criadas por soldados daquelas vilas, com o intuito de combater o avanço do exército de Hitler na região. O jovem fica empolgado por finalmente poder ir à combate, contrastando com o desespero de sua mãe, apavorada com a provável possibilidade de perder seu filho.

A partir dai, a vida de Flyora muda completamente. No acampamento dos partisans (membros da resistência, guerrilheiros), o jovem é deixado para trás pelos soldados, por ser muito novo, então ele conhece a jovem Glasha (Olga Mironova), os dois se tornam amigos, a vila é bombardeada pelos alemães, sobrevivendo somente ele e a menina. Assim, eles partem para a casa de Florya, mas sua família e quase toda comunidade havia sido massacrada pelos nazistas, deixando-o órfão e desolado. Florya encontra alguns de seus vizinhos sobreviventes que estavam sob a proteção de soldados, e após um tempo tentando se recuperar do luto, parte em busca de comida, com membros da milícia. No trajeto, após alguns tiroteios e explosões, todos os seus companheiros morrem, e o garoto agora se encontrava sozinho, em terreno selvagem, cercado de inimigos, tendo diante de seus olhos todos os horrores da guerra.

Vá e Veja foi o último filme dirigido pelo soviético Elem Klimov, e também o seu maior sucesso de crítica e público. O tema de guerra foi um tanto inesperado, visto que, o diretor sempre trabalhara com comédias, tanto no cinema quanto na TV. Klimov era casado com a também diretora e muito renomada em seu país, Larisa Shepitko, que veio a falecer em 1979, aos quarenta e um anos de idade, vítima de um acidente de carro. Esse fato impactou de forma significativa o trabalho de seu marido, e seus filmes subsequentes falavam sempre sobre tragédias. E após finalizar “A Despedida” (Proshchanie) em 1983, filme que fora iniciado por sua esposa, mas interrompido devido a seu acidente fatal, Klimov se dedicou a seu drama bélico.

Apesar de trágico, a produção de Idi i Smotri foi idealizada antes da fatalidade de Larisa Shepitko, em meados da década de setenta, tendo como base um livro chamado I Am from Fiery Village, do qual o roteirista Ales Adamovich era co autor, e também baseado em experiências próprias de guerra de Elem Klimov, que havia sobrevivido à Batalha de Stalingrado, quando tinha dez anos de idade. O cineasta teve que lutar durante oito anos para que sua obra fosse liberada para a produção pelo Comitê Estatal Soviético de Cinematografia (Goskino). Os censores estavam relutantes com o roteiro não só pelo hiper realismo na abordagem do regime nazista, mas também, porque além disso, o filme mostrava o abandono do governo da URSS em relação a regiões mais isoladas e rurais de seu território, deixando o povo desamparado, e ainda denunciando certas atitudes desumanas que os soldados milicianos da resistência tinham com os novatos. Depois de muita insistência, e uma flexibilização que ocorreu no órgão responsável por regulamentar o cinema soviético, o diretor conseguiu o aval e verba para iniciar seu trabalho, mas seu título original “Mate Hitler” foi recusado, sendo assim, Klimov o batizou com o título o qual foi lançado, fazendo referência a um trecho do livro de Apocalipse (trecho citado no início do texto).

Para o papel do protagonista, foi escalado o estreante Aleksey Kravchenko, de apenas quatorze anos na época. O jovem precisou de acompanhamento psicológico durante as filmagens e também de um hipnotizador, pois o roteiro exigia muito do ator em virtude de o filme ser totalmente focado em seu personagem, quase um monólogo. E Kravchenko tem uma atuação que beira a perfeição, com suas expressões faciais sendo pontos cruciais da projeção, desde a alegria estampada em seu rosto no início, feliz porque poderia ir à guerra e lutar pelos seu país, uma alienação típica, até sua expressão de pavor que o acompanha até o final, diante das atrocidades que testemunhava, dos terrores da guerra, em momentos alternando o olhar de desespero com risadas fora de contexto, deixando claro que seu psicológico estava prejudicado. Quando o horror começa em sua vida, logo vemos Florya envelhecer, aquela face jovial já não existia, e vai deteriorando cada vez mais, a cada experiência traumática, um jovem que antes brincava de soldado com seu amigo, agora tendo toda sua formação e seu crescimento forçado, sua transição de menino para homem em um cenário apocalíptico, sem esperança, enxergando da maneira mais cruel o que era a guerra de verdade. Após Vá e Veja, Aleksey Kravchenko passou mais de uma década sem atuar.

A película tem diversos pontos técnicos a serem destacados, como a direção de fotografia de Aleksey Radionov com seus belos planos em movimento, planos abertos e noturnos, outra sacada genial é a câmera em primeira pessoa em alguns momentos, para nos colocar dentro do filme, nos tornando os olhos de Florya. A trilha sonora de Oleg Yanchenko também é belíssima, e ainda alternando seus temas com músicas clássicas de Wolfgang Amadeus Mozart, Richard Wagner e Johann Strauss II. Tudo isso conduzido com maestria por Elem Klimov.

Interessante também notar que, até certo momento da obra, os nazistas são como uma ameaça invisível, nenhum soldado é mostrado, somente seus aviões de reconhecimento, bombas despejadas e tiroteios distantes, o suspense vai sendo mantido, até a cena do massacre no vilarejo, onde Florya, quando sozinho, buscava refúgio após a morte de seus companheiros. Tudo que acontece ali é mostrado de forma crua e avassaladora, soldados pegando os camponeses à força, com maus tratos, tortura, estupro, reunindo a aldeia em um celeiro, trancando as vítimas lá dentro, e incendiando o local, queimando pessoas vivas. Seus gritos de dor e desespero são ouvidos e recebidos com aplausos e risadas por seus assassinos, como se a barbárie fosse algo a ser reverenciado, a desumanidade contida nos soldados nazistas e a forma com que tudo isso é mostrado em tela, chega a dar um nó na garganta do telespectador. E o olhar desolado de Florya está lá, presenciando tudo, sem rumo, não acreditando no que estava sendo submetido, um retrato cruel e devastador. E como se não fosse o bastante, o próprio filme nos diz que mais de seiscentos vilarejos bielorussos foram aniquilados pelos alemães, milhares de pessoas sofreram e morreram daquela forma. No total, a Bielorrússia teve cerca de um terço da sua população dizimada (algo em torno de dois milhões, duzentas e trinta mil pessoas) durante a ocupação dos comandados de Hitler.

Após nove meses em produção, Vá e Veja finalmente foi lançado em Julho de 1985, em Moscou, e em outubro em outros países, recebendo críticas positivas, tendo também um sucesso de público considerável. Saiu vencedor do Prêmio Ouro no Festival Internacional de Cinema de Moscou no mesmo ano, e ainda teve sua versão restaurada recebendo o Prêmio Clássicos de Veneza de Melhor Filme Restaurado, no Festival de Veneza em 2017, mas não conseguiu a vaga para disputar o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro na cerimônia de 1986. Em 2001, quando lançado em DVD nos Estados Unidos, o filme voltou a notoriedade, foi se popularizando cada vez mais, fazendo sucesso em videolocadoras, com o seu devido valor merecidamente reconhecido, hoje figurando entre os melhores filmes de guerra já feitos.

Em 1986, Elem Klimov foi escolhido por seus colegas de ofício para ser o Primeiro Secretário da União de Cineastas. Sua liderança permitiu que diversos filmes antes censurados fossem lançados de forma tardia, e que alguns diretores que perderam apoio político fossem reintegrados, mas ainda descontente com alguns obstáculos, abandonou o cargo. Ele nunca mais dirigiu um filme, nos anos 2000 declarou: “Perdi o interesse em fazer filmes. Tudo o que era possível, senti que já tinha feito”. E assim foi até sua morte em 2003, vítima de uma hipóxia cerebral, aos setenta anos de idade. Pelo menos sua obra derradeira, foi também sua obra prima, encerrando a carreira cinematográfica com chave de ouro, e poucos realizadores tiveram esse privilégio.

No final das contas, Vá e Veja é uma obra de arte e um filme perturbador, para se refletir, impactar, nos deixar incomodados e alertar, mostrando toda a crueldade que um regime totalitário, ditador e desumano pode causar, e a lavagem cerebral que este mesmo provoca em seus adeptos. Em suma, o título original pretendido por Klimov “Mate Hitler”, não significa exatamente matar a pessoa Adolf Hitler, e sim, combater, destruir tudo o que ele representa, sua ideologia, seus objetivos, para que essa História jamais se repita novamente. Parece até absurdo, mas ainda se faz necessário falar sobre isso, posto que, aos poucos o nazifascismo vem cada vez mais em ascensão, e é imprescindível cessar sua voz ainda ecoante mundo afora.

Informações técnicas. 

 Título: Vá e Veja (Idi i Smotri)

País: União Soviética.
Ano: 1985
Gênero: Drama – Guerra
Direção: Elem Klimov
Duração: 142 minutos
Elenco: Aleksei Kravchenko: Florya Gaishun | Olga Mironova: Glasha | Liubomiras Lauciavicius: Kosach |Vladas Bagdonas: Rubezh | Viktors Lorents: Comandante Alemão

Sinopse:  Bielorrússia, 1943. O jovem camponês Florya (Aleksei Kravchenko) é cooptado por um despreparado grupo de guerrilheiros antinazistas. Em confronto com os alemães, o garoto é deixado para trás e decide retornar ao seu vilarejo. Chegando lá depara-se com o desolador cenário de um massacre. Perturbado, ele passa a vagar sem rumo, presenciando cenas cada vez mais fortes.

Marcações: