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Café Arcaico | Rashomon

Eis que o Ocidente se rende à genialidade de Akira Kurosawa

Japão, século XI. É um dia chuvoso, dois homens, um lenhador (Takashi Shimura) e um sacerdote (Minoru Chiaki), se abrigam nas ruínas de pedra, de frente ao portão do vilarejo Rashomon. O lenhador parece inconformado com alguma coisa que não consegue entender. Nesse momento surge um camponês (Kichijiro Ueda), que também corre para fugir da tempestade. Este, ao ouvir as lamentações do homem, fica curioso para saber o que o incomodava. O fato é que, recentemente, acontecera um julgamento no vilarejo que deixara todos chocados com a complexidade do caso.

O lenhador, então, põe-se a narrar a história:

Ele conta que estava nas montanhas procurando lenha, quando se depara com um defunto no meio da floresta, e corre em desespero, para avisar as autoridades.

Aquele corpo se tratava de um samurai que havia sido assassinado, e sua mulher, que não estava no local, fora estuprada. Assim que o criminoso foi capturado, começa o julgamento, e com este, todas as complicações devido aos depoimentos conflitantes.

Depoimento do criminoso, conhecido como ”Tajomaru”(Toshiro Mifune): Em seu relato, após enganar o samurai, chamado Takehiro Kanazawa (Masayuki Mori), para que este saísse de sua trilha, Tajomaru trava uma luta com ele, até que consegue rendê-lo e amarrá-lo a uma árvore, então, ele volta até onde estava a mulher, Masako Kanazawa (Machiko Kyô), para estuprá-la. Ele a leva até seu marido, no intuito de humilhar o homem rendido, tomando a esposa na sua frente.

Rashomon

Segundo ele, a esposa, diante da situação, se entrega por vontade própria. Mas após o ato consumado, ela se sentindo envergonhada, pede para que o bandido duele com o seu esposo até à morte, para que apenas um homem ficasse ciente de sua desonra. O samurai, acaba sendo morto no duelo, e Masako foge do local assim que a batalha termina.

Depoimento de Masako: Em seu relato, a esposa, conta que após ser estuprada, Tajomaru foge, e ela implora pelo perdão do marido. Este, simplesmente a olha com frieza e nada diz. Ela continua implorando mas continua sem resposta. Até que ela pede para que o esposo mate-a para que ela pudesse ficar em paz, mas mesmo assim, ele continua imóvel. Após isso, ela alega ter desmaiado, e quando acorda, o marido está morto, com uma adaga cravada no peito, teria cometido suicídio. Ela ainda conta que tentou diversas maneiras de se matar, inclusive se jogando em um lago, mas não obteve sucesso.

Através de uma médium, o falecido samurai também presta seu depoimento.

Depoimento de Takehiro Kanazawa: Em seu relato, o samurai morto, acusa sua esposa de ter aceitado fugir com Tajomaru após o estupro, e de ter incentivado o bandido a matá-lo, pra que apenas um homem vivo soubesse da sua desonra. Tajomaru, envergonhado com a atitude de Masako, coloca o destino dela nas mãos do esposo, ele a deixaria partir ou a mataria. Nesse momento ela foge, e o bandido liberta Takehiro. Este, sentindo-se humilhado, comete suicídio cravando uma adaga em seu peito. E ainda relata que, após isso, alguém chegou e tirou a adaga de seu coração e a levou embora. Pois era um objeto de valor alto.

Depoimento do lenhador (Este não foi feito no tribunal): O lenhador, que não quis contar sua versão para o inquiridor, para não se envolver no caso, e por isso, havia mentido anteriormente sobre como encontrou o cadáver, relata o que viu ao camponês. E segundo ele, após o estupro, Tajomaru pede a Masako para ir embora com ele. Ela então, liberta seu marido, e este começa a se desfazer da esposa dizendo que jamais morreria por uma mulher como ela. Masako, então, tomada por uma fúria descontrolada, começa a incitar os dois homens para que brigassem por ela. Tajomaru vence o duelo e mata Takehiro. Então, tenta se aproximar da mulher, que acaba fugindo, aparentemente arrependida do que tinha feito. O bandido não consegue alcançá-la, ele apenas pega a espada do samurai morto e vai embora.

Quatro depoimentos contraditórios, quatro “verdades” que não se encaixam,  em um caso que parece impossível de se apurar a veracidade dos fatos.

Lançado em 1950, dirigido por Akira Kurosawa, e com roteiro do próprio diretor em parceria com Shinobu Hashimoto (que viria a colaborar com Kurosawa em outras grandes obras), Rashomon tem como base dois contos de Ryūnosuke Akutagawa, “No Matagal” (1922) que determina os personagens e “Rashomon” (1915), determinando a ambientação e a forma da narrativa.

E trouxe inovações em aspectos técnicos, na forma de se contar uma história, com estrutura nada convencional, foi o primeiro filme a fotografar diretamente o sol, e usar espelhos para que a luz solar refletisse na face dos personagens, utiliza-se também de flashback dentro de outro, e com a câmera e a iluminação sendo fatores muito importantes para determinar certos acontecimentos e características de cada individuo. E ainda conta com a belíssima fotografia de Kazuo Miyagawa, a ótima trilha sonora de Fumio Hayasaka, e a excelente direção de atores de Kurosawa, algo que ele sempre fazia de maneira primorosa. O diretor também estabeleceu uma relação de proximidade com o seu elenco, algo que ele alegava ser muito benéfico para a produção. Um dos fatos curiosos é que ele pediu ao protagonista Toshiro Mifune, que incorporasse seu personagem como um leão perambulando pelas savanas, e o resultado pode ser visto com a atuação selvagem e quase inumana do ator.

O filme sobreviveu a três incêndios antes de sua finalização, e contou com um orçamento baixíssimo, já que o chefe da produtora Daiei estava bastante relutante em relação a produção, pois ainda não tinha certeza sobre o que se tratava a obra. E a recepção no Japão acabou sendo um tanto morna, os críticos alegavam que Rashomon era muito complicado, por vezes monótono, cheio de desgraças e muitos acabaram não o entendendo, e de fato, não é um filme de fácil compreensão.

Porém, acabou se tornando um grande sucesso no Ocidente, sendo vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza, além de um Óscar honorário de Melhor filme estrangeiro.

Os críticos japoneses, surpreendidos com a recepção na Europa e EUA, alegaram que Kurosawa fazia filmes pra ocidental ver, fator que o acompanhou (e o prejudicou) por praticamente toda sua carreira, sendo sempre mais valorizado no exterior do que em terras nipônicas.

A partir dai, o cinema ocidental se rendeu à sua genialidade, se inspirando, fazendo remakes ou adaptando as obras de Kurosawa, principalmente, ao faroeste norte americano. Por exemplo, o filme The Outrage de 1964, dirigido por Martin Ritt, é um remake de Rashomon. Sete Homens e um Destino, de 1960 dirigido por John Sturges, e sua versão mais recente, de 2016, de Antoine Fuqua, são remakes de Os Sete Samurais (1954), aliás, até Vida de Inseto, da Pixar, é totalmente baseado nessa obra. Por um Punhado de Dólares, 1964, do diretor Sergio Leone, foi inspirado em Yojimbo, de 1961. E talvez a influência mais importante de todas, A Fortaleza Escondida, de 1958, foi a principal inspiração para George Lucas, fazer nada mais, nada menos, que seu Star Wars. Isso aí, caros fãs da saga dos Skywalker (tipo eu), talvez, nada disso existiria sem Akira Kurosawa.

Rashomon, além de ter sido um filme pioneiro, é uma obra tão importante na história do cinema, que continua sendo objeto de estudos, análises e interpretações mundo afora. Na Psicologia, a obra deu origem ao chamado Efeito Rashomon, termo utilizado para qualquer situação na qual a veracidade de um evento é difícil de ser verificada devido a julgamentos conflitantes de diferentes testemunhas, já que cada individuo interpreta o ocorrido de uma forma muito pessoal. Mas além de discutir o quanto a verdade pode ser algo subjetivo, Kurosawa também traz um belo estudo sobre a índole do ser humano, moral, realidade e suas atitudes diante de determinadas situações.

Uma obra de arte de um grande mestre do Cinema.

Dados Técnicos.

Título: Rashomon – 1950.
País: Japão.
Duração: 88 minutos.
Direção: Akira Kurosawa.
Elenco: Toshirô Mifune, Takashi Shimura, Machiko Kyô, Masayuki Mori, Minoru Chiaki, Kichijiro Ueda…

Sinopse: Japão, século XI. Durante uma forte tempestade, um lenhador (Takashi Shimura), um sacerdote (Minoru Chiaki) e um camponês (Kichijiro Ueda) procuram refúgio nas ruínas de pedra do Portão de Rashomon. O sacerdote diz os detalhes de um julgamento que testemunhou, envolvendo o estupro de Masako (Machiko Kyô) e o assassinato do marido dela, Takehiro (Masayuki Mori), um samurai. Em flashback é mostrado o julgamento do bandido Tajomaru (Toshirô Mifune), onde acontecem quatro testemunhos, inclusive de Takehiro através de um médium. Cada um é uma “verdade”, que entra em conflito com os outros.

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