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HQ’s Entrevista | Carlos Clara Gomes (Escritor Português)

Antes de começarmos gostaria de agradecer ao professor de História e Filosofia Clayton Alexandre Zocarato. Ele conseguiu entrevistar o multitalentoso Carlos Clara Gomes. Para quem não conhece o artista. Carlos nasceu no ano de 1958, em Viseu, é Cantautor, Compositor, Dramaturgo e Encenador, além de ser Diretor da Companhia Teatro De Mente.

Sem delongas, fiquem com a entrevista elaborada pelo professor…

Em Viseu (Portugal), literatura e contestação se misturam dentro de um mesmo sentido de divulgação a um novo humanismo, tendo as premissas de uma valorização do sentimento verdadeiro, pela paixão do saber, de um nivelamento de entendimento intelectual onde “todos” possam ser ouvidos, independente de classe, credo, etnia, posição política e religiosa, podendo lançar uma arquitetura de crítica, como fator não de dilaceramento entre nichos de conhecimento diferentes entre si, mas que tenham o sublime de compromisso de realçar e despertar novos sonhos entre as pessoas.

O intelectual luzitano, escritor, compositor, diretor da Companhia de Teatro Demente, músico, Carlos Clara Gomes, fala acerca da importância da poesia para a formação de novos contingentes de leitores, da relação da leitura como construção social e moral, e da disseminação do “saber dialético”, em tempos sombrios de intolerância e descrença do homem pelo próprio homem, assim como dar uma pincelada em sua nova obra “Retrato de Mulher No Cais Durante”, recheado de toques de romantismo e saudade, diante um cenário vazio de ternura e carinho da modernidade.

Uma bela mistura, entre o erudito e o pop, imiscuída com odor de ceticismo, fazendo um ácido traçado de virtudes de amor pela arte, confira na entrevista abaixo, e se deliciem com a sinceridade e seriedade de nosso “camaleão” cultural.

1-) Caro Carlos, a literatura atualmente passa por um “boom”, de conter em suas premissas estéticas e ideológicas, um forte “pessimismo”, perante “o futuro do homem”, e questões éticas estão na ordem do dia nos debates intelectuais, todavia no caso específico da poesia, podemos dizer que contém seu espaço ativista ainda, perante a quantidade de livros com baixa qualidade que são lançados a cada ano nos mais diferenciados pontos do globo?

Não sei verdadeiramente se podemos considerar esse boom pessimista uma marca identitária exclusiva dos nossos tempos. Creio que todas as eras tiveram os seus arautos do fim dos tempos aqui ou ali… Porém, acho que a dimensão escatológica de alguns criadores está intrinsecamente ligada à falta de confiança no dia de amanhã. Muito frequentemente esta postura de alguns criadores reflecte também a vox populi que é, por essência, conservadora.

Quero com isto dizer que, como muito bem sabes, as sociedades temem sempre a mudança, a diferença, ainda que os elementos dessas sociedades individualmente pensem  diferente. Contudo (e não sei quem é o autor da frase) “todas as sociedades são reaccionárias” de alguma maneira. Mesmo quando são sociedades que brotam de alguma revolução. E isto prende-se necessariamente com a questão do Poder. Onde existe poder é inevitável a sua putrefacção a prazo. E, é claro, isto cria sentimentos nefastos e potenciadores de desânimo e aniquiladores de esperanças sobretudo nas pessoas socialmente mais humildes.

Agora viria a pergunta: “Mas não há solução para isso?” Eu acredito que haja. Mas essa solução não pode vir duma entidade messiânica. Não pode ser uma solução exógena. Tem que partir de cada um de nós. E já seria muito bom que cada cidadão se consciencializasse que tem não só o direito mas também o dever de colocar em causa algumas inevitabilidades adquiridas.

Quanto à questão que colocas sobre a qualidade dos livros, não gosto de me constituir juíz de nenhum criador. Repara uma coisa: Sempre houve livros de baixa qualidade. O primeiro livro, aliás, a ser publicado em massa por Gutenberg ainda hoje tem uma baixíssima qualidade literária, além de plagiar dogmas e eventos de outras religiões e de estar eivado de inúmeras crueldades, sobretudo no Antigo Testamento. E não é por isso que deixa de ser lido.

Atrevo-me a dizer que a má qualidade (não só a literária) não é uma questão exclusiva dos dias de hoje. Foi também uma característica das eras que nos precederam. Há, porém, três fenómenos: por um lado, um desses fenómenos: hoje somos muitas mais pessoas, o que faz com que também se produza mais má literatura (como também se produz mais boa literatura, obviamente); por outro lado: o fenómeno da “Sociedade Líquida” enquadrado por Zygmunt Bauman, em que cada um de nós passou a ter um portal de acesso ao mundo e a cada um dos habitantes do mundo… Pessoalmente, acho que essa aparente “proximidade” acaba por afastar mais do que unir as pessoas mas ainda não passou tempo suficiente para que eu consiga reflectir sobre isso com precisão.

Há ainda, outro fenómeno, nesse segundo lado da questão daquilo a que chamas má qualidade literária: Muitas editoras, hoje, adotaram a política de o autor pagar parte ou a totalidade da edição, chegando mesmo, em muitos casos a publicar um único exemplar se for esse o desejo e a capacidade financeira do autor. Trata-se do “print-on-demand”. Isto acaba por transformar as editoras em escritórios de tipografias – quando deveriam ser um filtro de qualidade e inclusive um apoio ao autor relativamente ao melhoramento da suas obras.

Mas eu não subscrevo necessariamente essa visão acerca da “má qualidade”. Acho que estamos ainda muito em cima do acontecimento para nos darmos conta do que está acontecendo verdadeiramente. Possivelmente só a geração dos nossos filhos poderá verificar com rigor a qualidade literária dos nossos dias. E aí estaremos no tal “futuro do homem” (que eu prefiro dizer “futuro da humanidade” para usar uma linguagem mais inclusiva).

Ainda quanto a outro item contido na tua pergunta: as questões éticas sempre estiveram presentes nos debates intelectuais ao longo da História. E, talvez – não o sabemos – da Pré-História, embora me incline para admitir que tenham estado na ordem do dia. Questões como a divisão social do trabalho, a dominação masculina, a proibição do incesto, entre outras devem ter sido objecto de intenso debate, não nasceram do nada, obviamente. E não me fere usar o qualificativo “intelectual” neste caso. A questão que se coloca é: quem participou nesse debate? E quem ficou barrado de entrar na participação nesse debate? São questões importantes que a Filosofia, a Epistemologia, a Arqueologia e a Antropologia (destas todas, afinal, a ciência que melhor nos poderá falar sobre isso), deveriam estar a dar-nos essas respostas pois tudo isto está intrinsecamente ligado ao nascimento do proto-capitalismo. Por essa mesma razão não considero que a guerra de alguns movimentos feministas se possa fazer isoladamente duma enorme sequência de batalhas e que se chama a derrota do capitalismo. Porque o capitalismo não surge apenas da relação de trabalho/capital descrita por Marx e Engels no momento da Revolução Industrial. Vem desde aquele momento em que algumas comunidades descobriram que podiam deixar um talhão de terreno de pousio (sem agricultar durante um ano) para acumular riqueza. Resumindo: para não terem que se preocupar com “o futuro”. Surge aqui uma das características do capitalismo: a ganância (curiosamente, um dos sete pecados mortais).

Ou seja: esse foi o momento em que a humanidade parou de sonhar, o momento fundador do capitalismo que trouxe os fenómenos que lhe são associados: o empréstimo. Inicialmente, esses empréstimos eram de gado (em castelhano: ganado, que também significa ganho. Daí percebemos rapidamente o étimo da palavra ganância porque a Filologia também nos ajuda a perceber como é que as palavras e os sentidos que os povos lhe deram viajaram até nós nos dias de hoje). Mas é nesses momentos que surgem também: a subalternização da Mulher (e não apenas da mulher mas também das crianças, dos doentes e dos idosos. Ou seja: o lúmpen do proletariado daquela sociedade), a monoandria, o uso e comercialização da mulher como moeda de troca nos contratos de casamento com a comunidades vizinhas (sobretudo para selar fusões de propriedades por via de heranças entre as partes contraentes).

Estas sociedades fundadoras do protocapitalismo acabam por ser as relançadoras do que mais tarde vêm a ser as “ordens sociais” medievais: O Clero (nas sociedades primitivas, os Xamanes, isentos de trabalho porque tinham a função de comunicar com as divindades), a Nobreza (os caçadores-recolectores, responsáveis por trazer a comida para a aldeia e por guerrear, já que a arte da caça está indissociavelmente ligada à arte da guerra) e o Povo (como já referi: as mulheres, as crianças, os velhos, os doentes. Enfim: todos aqueles que não tinham condições de combater ficavam na aldeia a trabalhar na agricultura e na pecuária ou fazendo tarefas domésticas necessárias à comunidade ou ao clã).

Engels, no seu “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” retrata bem todo esse tecido, debruçando-se exaustivamente sobre as sociedades do Crescente Fértil.

Mas, desculpa esta larga resposta à tua questão, é importante terminar isto com a ideia de que não acho preocupante que haja má qualidade literária nos dias de hoje. A História tem-se encarregado de manter vivos Homero, Dante, Shakespeare, Camões, Gil Vicente, Padre António Vieira.

A História é o verdadeiro filtro. Já não tenho tanta certeza que consiga manter vivos os autores da chamada auto-ajuda ou outras correntes. Na verdade, creio que o “auto” refere-se aos próprios escritores: ajudam-se a eles mesmos…

 2-) A poesia, e sua genealogia moral, pode estar ligada a uma carência intelectual e criativa, que estamos vivenciando?

Acho que cada poeta falará por si pois cada um saberá das suas motivações relativamente às suas obras. Pessoalmente – e não sei bem aquilo que sou pois tenho escrito sobretudo Teatro e Canções ao longo da minha carreira – não acho que isso chegue para fazer de mim um Poeta. Tento viver poeticamente, persigo o Belo apesar dos dias turvos. Mas uso também a sujidade para combater a sujidade instalada. Considero-me também um cantautor de denúncia já que tenho consciência que uso a canção como veículo de combate (não necessariamente no sentido neo-realista), forjado que fui na admiração por homens como Woodie Guthrie, José Afonso, Leo Ferré, Silvio Rodriguez, Alfredo Zitarrosa, Chico Buarque, Vandré e tantos, tantos, tantos outros: Gonzaguinha e Raúl Seixas, por exemplo. Mas também admiro na escrita tout-court Kerouac ou Ginsberg. Sinto aquela escrita como um poemário, um desfile de canções. Ou também uma exposição fotográfica no sentido de retrato sociais que partilham connosco. “O Uivo”, de Ginsberg é, por exemplo, um verdadeiro uivo contra uma sociedade pútrida. Sinto que a escrita on the road da Beat Generation, trouxe um contributo urgente e necessário a uma geração de sonhadores que um dia tiveram a veleidade de querer mudar o mundo… Como também me influenciaram no teatro de forma crucial autores como Ariano Suassuna, Guimarães Rosa, Machado de Assis ou Aquilino Ribeiro. No romance, decididamente, foi Jorge Amado ou García Marquez os responsáveis por me impulsionar na escrita. No meu romance de estreia (Montemuro) senti-me como um discípulo de todos esses nomes que citei, desde o Kerouac ao García Marquez. Ao escrever o Montemuro sentia-me como se estivesse a fazer os “trabalhos de casa” que aqueles mestres me impuseram apesar das diferenças estéticas e culturais entre eles.

Tudo isto para responder que não sei verdadeiramente aquilo que sou: não sei se sou compositor, sou cantautor, escrevo e dirijo teatro, escrevo romance e escrevo poesia. Creio que tudo isso são formatos. O campo poiético, o horizonte criativo é tremendamente vasto. Nem creio que haja horizontes. Talvez o correcto seja existir um único horizonte, contrariamente ao Universo, que deveria possivelmente chamar-se Multiversos. É que o horizonte depende do momento em que tens o teu foco de atenção virado para ali, para aquela direcção. Esse é o teu horizonte: É aquilo que vês. Viras-te para outro lado e tens o mesmo horizonte. Vês outras coisas que não vias no momento anterior mas é isso que torna a coisa bela: cada momento, é único. O horizonte está ligado ao conceito de Futuro visto a partir do Presente que, esse sim, é efémero, não existe. O Futuro, ao contrário do que muita gente pensa, é a coisa mais verdadeira que existe. Eu conheço o meu Futuro. Todos o conhecemos. Sabemos que, cedo ou tarde, morreremos. Esse é o Futuro de cada um de nós. O Presente, por tão fugaz, não existe. É a maior abstracção possível. Quando começaste a ler a palavra “quando” com que comecei esta frase estavas no presente. Agora, neste momento, aquela palavra já está no Passado.

Não me detenho com análises de formatos. Nem tampouco fico escravo delas. Por exemplo: escrevi um ensaio que acabou por desaguar numa peça de teatro, um monólogo: As Crónicas do Inverno, a narrativa da infância, da adolescência e dos dias de hoje vistos pelos olhos da minha geração, os que tinham 15 anos quando aconteceu em Portugal essa belíssima coisa que foi o 25 de Abril, a Revolução dos Cravos.

Crónicas do Inverno. (Foto: Wilfred Hildonen | Local: Cadeira Amarela)

3-) A poesia tem alguma chance de renovação e reprodução, perante o crescente mercado da “cultura de massa”, que se alastra rapidamente em praticamente todos os campos da contemporaneidade?

Não sou adversário da cultura de massas. Sou adversário, isso sim, das políticas que visam o embrutecimento das massas. Gostaria mesmo que chegássemos a um estádio civilizacional em que os cidadãos fossem de tal forma exigentes que rejeitassem o lixo. E, sabe-lo bem, há lixo de diversas matizes. Não é só o lixo do pé-rapado: Há também o “lixo do Leblon” que Caetano cita na sua canção O Haiti. Frequentemente esse lixo dos vários Leblons do mundo vêm sufocar algumas genuínas manifestações artísticas de raiz cultural popular. O musicólogo cubano Eduardo Acosta diz, no seu livro “Música e Descolonização”, que a definição de Música Popular (e, por extensão, qualquer manifestação artística dum povo) é sempre uma definição unilateral pois é estabelecida e sistematizada pelo poder de turno. É esse poder que define o que é “seu” e o que é “popular”, muitas vezes relegando algumas artes populares para o campo do “artesanato”, como se tal fosse uma coisa menor.

Mas há muita fraude por parte de muitos compositores contemporâneos, por exemplo. Como há de muitos dramaturgos. Como há de muitos escritores. Só o tempo nos dará a verdadeira dimensão daquilo que é fraudulento e daquilo que não o é. Muitos Leblons esconderão os seus lixos debaixo do tapete como se fossem aquele parente incómodo vindo do interior que os encontra numa vernissage. Há a moda e há a modernidade. São coisas diferentes. E, muitas vezes, antagónicas.

Contudo, importa referir uma coisa relativamente à cultura de massas: Da mesma forma que não faria sentido expor a Guernica na feira de Caruaru – apenas porque o público da feira não tem condições (na feira) para desfrutar a dimensão da Guernica (e porque esse público merece o desfrute cabal da Guernica e não por outra qualquer razão de ordem classista), seria igualmente a coisa mais desengraçada do mundo ir dançar num arrasta-pé ao som dum trio de Jazz toando Thelonius Monk ou dum quarteto de cordas tocando Olivier Messiaen… Também temos que saber aprender como são as coisas e em que sítio as devemos colocar.

4-) Em sua opinião, como está produção intelectual portuguesa? Está se reinventando? Ou está estagnada?

Mentiria se dissesse que a produção artística portuguesa vai de vento em popa. Como também não acreditaria se me dissesses isso mesmo da produção artística brasileira. Ou da colombiana. Ou da cabo-verdiana. Num momento mais agudo de crise financeira quem sofre é essa mesma produção. Nos países atingidos pela crise do sub-prime e com governos menos sensíveis à urgência da revitalização da produção artística essa situação atinge foros dum obscenidade atroz. Estamos falando de produção artística, não estamos falando de criação artística. As dificuldades financeiras podem impedir a concretização dum projecto, a montagem duma peça, a realização dum concerto, a estreia dum filme em tempo útil.

Criação é outra coisa: nunca se deixa de criar. Aqueles que acreditam no tal Futuro – e eu acredito – não param de criar. Nem que as criações fiquem vários anos na gaveta… mas um dia sairão de lá para irem para a partilha pública.

É claro que essa situação não se pode aplicar aos criadores de arte fast-food pois aquilo que criam está estreitado nas margens do que lhes é determinado pela estética e pela ética reinantes.

Por isso a resposta é: Não, não está estagnada. Contudo, é claro que um país como Portugal, sem uma verdadeira “indústria” criativa montada (contrariamente ao Brasil), com um povo sem tradição cultural de considerar o ingresso no teatro, a aquisição dum livro ou dum CD, como parte integrante da sua cesta básica torna difícil a sobrevivência dos criadores.

Mas tu referes “produção intelectual”. Se pretendes com isso referir-te à produção de pensamento, creio que existem muitos teorizadores, nas diversas áreas do conhecimento a produzir em Portugal.

Apenas lamento – e é apenas um pequeno lamento – que muita dessa produção esteja confinada dentro dos muros das universidades. Uma das premissas do Processo de Bolonha era exactamente essa: o derrube das muralhas da academia e a partilha com a população. Não digam que não se promovam conferências e debates abertos aos público. Lamentavelmente, porém, os circuitos de difusão e promoção dos eventos leva a que tomemos conhecimento desses mesmos eventos depois de muitos deles já terem ocorrido.

5-) Estaremos vivenciando um existencialismo moral e intelectual camuflado, por autoafirmações de “eus”, doentes de cultura hibrida e erudita em nossos dias?

Bem, quanto ao existencialismo: Se considerarmos o pensamento de Kierkegaard em que postula que o indivíduo deve dar significado à sua vida e buscar a felicidade e vivê-la apaixonadamente, creio que subscrevo esse pensamento embora com reservas.

Por exemplo: concordo quando acho que ninguém irá viver a minha felicidade por mim. Até porque a dimensão e o conceito de felicidade são absolutamente pessoais e intransmissíveis e dependentes das idiossincrasias de cada ser humano. Até aí estou de acordo, tal como o conceito de cada um procurar dar significado à sua própria vida.

Contudo estes conceitos podem resvalar rapidamente numa espécie de lei da selva, num salve-se quem puder em que a palavra de ordem será: o último a sair feche a porta. O egoísmo é o nome do circo que chegou à cidade. A delação ganhou estatuto de virtude, a promoção do culto do indivíduo em detrimento do colectivo transformou-se num emblema. Hoje é frequente, na apresentação de currículos para empregos, os jovens acrescentarem uma nota: “Observações: Não fumo”. Este detalhe, aparentemente inócuo, significa uma mensagem, um recado, ao eventual empregador que se traduz assim: “Se me empregares tens mais vantagens nisso pois não perco tempo a vir cá fora fumar um cigarro e assim podes explorar-me melhor. Além disso, podes despedir um gajo que fume”.

6-) O “romantismo” ainda ocupa lugar de destaque, dentro da disseminação leitora que estamos alojados?

Creio que sim. Sinto que há uma necessidade enorme das pessoas se sentirem amadas. Existe uma necessidade visceral de romance na sociedade contemporânea. Não sei explicar sociologicamente esta dimensão. Constato a sua existência, apenas. Há muitos desamores nos dias de hoje. Paixões não correspondidas, “traições”, o desejo de aventura é imenso. A rotina é fastidiosa: Sou mal amado ou mal amada? Tenho uma boa solução: vou escrever um poema no Facebook. Ok. Fiz bem, sinto-me melhor. Desabafei… Tive apenas 2 likes e um foi da minha mãe que põe likes em tudo desde que lhe ofereci o PC no Natal. Agora vou ilustrar o poema com uma imagem. Escolho algo que indicie uma pulsão erótica. Vamos a isso. Cá está: Uma foto a preto e branco, um casal nu na areia da praia –  apenas se vê o que é “decente” ver-se, nada de frescura ou modernices – uma rosa vermelha entre os dois. Edito o post anterior? Não. Elimino e faço um novo post agora com a foto… Bem bom: tive 850 likes e 135 comentários, todos eles referindo-se à foto e não ao poema. Agora sinto-me verdadeiramente bem. Há pouco sentia-me apenas bem. Agora o meu ego inchou.

Correndo o risco de parecer injusto, diria que esta ferramenta das redes sociais também serve para nos dar a sensação de que abrimos a janela e gritámos para a rua: Fora Temer! E pronto. Está resolvido o problema. Fiz a minha boa acção do dia.

Porém a verdade é que não fui gritar para a rua: Fora Temer!… Não, não fiz isso. E o que até poderia ser um grito que causasse estragos na governação Temer passou a ser uma medida assexuada de intervenção cívica.

Não significa que eu ache que tal ferramenta como o Facebook ou outras redes não devam ser usadas para isso! Acho, isso sim, que também deveremos canalizar a revolta para formas de combate organizado de modo a poderem ser verdadeiramente eficazes. E isso faria com que cada um de nós adquirisse uma verdadeira consciência de cidadania.

7-) Em sua recente obra “Retrato de Mulher no cais Durante” (2017) , você trata muito arduamente da solidão, de amores distanciados pelo egoísmo, e por entraves de busca em terra longínquas de uma vida melhor, lançando uma condição do sonhar, como uma forma de suprir a dor da realidade de não estar com a pessoa amada, a saudade, pode vim a ser classificada como um personagem oculto em sua poesia?

Vou tentar organizar a resposta pois a tua pergunta tem várias perguntas dentro dela.

Primo: Este livro fala de dois pontos de vista. O de quem fica e o de quem parte. Tanto assim é que tem duas capas e nenhuma contracapa. Em qualquer das abordagens de leitura, a obra termina no meio do livro. Ou seja, como disse um dos prefaciadores, o Ricardo Fonseca Mota “é um livro para onde se pode entrar por duas portas e donde não se sai”. Os poemas de quem fica são “simétricos” com os poemas de quem vai. Abordam-se de pontos de vista diferentes. Em determinado momento, a mulher (“quem fica”) começa a desacreditar do regresso do homem (“quem vai”). Por seu lado, ele começa – ele-mesmo – a acreditar que talvez não compense o esforço do regresso apesar de, tenazmente, o desejar ardentemente. O poema final é comum: Por parte dela adquire a forma duma interrogação. Por parte dele adquire a forma duma resignação.

Este livro veste-se duma metáfora de viagem, corporizando aqui uma daquelas chamadas “viúvas de maridos vivos” cujo esposo ou noivo buscou vida no Brasil, na Venezuela, na Argentina, nos Estados Unidos, em Angola, Moçambique, no Congo, na Rodésia, estas algumas das rotas de migração dos embarcadiços. Esta é a metáfora. Mas também pode aplicar-se a separações não devidamente esclarecidas. Por exemplo: as antigas paixões que não foram verdadeiramente apagadas enquanto ele ou ela ou ambos andaram “viajando” por outras vidas, outros amores.

Porém, é sempre uma homenagem a quem sofreu com esses distanciamentos.

Secundo: Não creio – pelo menos não o senti quando escrevi o Retrato – que se detecte ali alguma situação de amores separados pelo egoísmo. Pode, isso sim, haver alguma situação de amores separados pelo medo, seja esse medo aquilo que for: balançar entre o romantismo desejado interiormente e o pragmatismo duma vida “certinha” e garantida.

Tercio: Sobre a personagem oculta. Há como que um narrador indelével mas discreto. Por vezes fala com ela. Por vezes fala com ele. Alguns poemas são, por vezes, como que cartas que ele escreve para ela. Outras vezes são cartas que ela escreve para ele. O último poema é decisivamente escrito por cada um deles, como aquelas cartas que se escrevem para alguém mas que nunca se enviam.

Ambos sabem – na verdade – que qualquer um deles  ficará vinculado àquilo que escreverem. Por isso fica no ar a dúvida se foram ou não recebidas aquelas cartas, apesar duma ser pergunta e outra ser resignação. Mas pode apenas ter-se tratado de actos que resultaram de estados de espírito momentâneos e fugazes. Ou talvez não. Cabe a quem lê decidir isso. A mim compete escrever o livro, a quem o lê compete a interpretação.

8 -) “Cantamos saudades, e esquecemos de viver o amor”, uma provocação relacionado as memórias de sua obra, estamos vivendo somente por viver, sem perspectiva de utopias? Qual sua opinião da afetividade como cunho intelectual e filosófico, dentro de nosso atual momento histórico?

Acho que ainda há muita gente vivendo utopias. É certo que, nos últimos anos, a Dona Morte levou muitos utópicos na garupa do seu cavalo entre os quais o Eduardo Galeano ou o Umberto Eco. Contudo ainda ficaram muitos para semente. E depois desses partirem ainda ficarão muitos!

Mas a minha saudade não se reflecte no passado. Isso seria nostalgia, aquilo a que os gregos chamavam a dor do regresso a casa. A minha saudade espelha-se no Futuro, no tal horizonte que referi noutra resposta. Sei perfeitamente a diferença entre nostalgia – que a sinto também e que gosto de a saborear pois vou lá buscar algumas das minhas marcas identitárias geracionais – e saudade, que é esse sentimento lindo que nos faz voar para a tal ilha encantada e a sociedade perfeita que nunca chegaremos a alcançar na nossa vida mas que cada vez mais ficaremos perto dela.

E acredito piamente que a Humanidade um dia conseguirá esse desígnio.

09-) A saudade pode ainda, estar dentro de uma literatura poética, ao qual possa vim a construir um caminho de apreciação da leitura para os jovens?

Essa pergunta levanta várias questões mas destaco apenas uma delas como matriz: hoje constatamos que as novas gerações “não gostam de ler” atendendo a inúmeras solicitações que brotam de devices electrónicas tais como smartphones, tablets, etc…

Não tenho claro que não gostem de ler. Creio que lêem e até lêem muito. Nessas mesmas devices.

Aqui a questão não deve ser o suporte: a História desde que se chama História já se escreveu em abundantes formatos. Neste momento existe um novo ambiente – a internet – que remete para novos sub-formatos (os e-books, os blogues, etc., etc.).

Se calhar há a necessidade de começar a fornecer conteúdos de qualidade a estas gerações.

Quanto à saudade como tema de apreciação de leitura para os jovens, convenhamos que a sua característica de serem jovens ainda não exponencia verdadeiramente a saudade (entendida lato senso e não apenas no sentido em que eu a entendo para mim).

Trabalho muito com elencos jovens pois a minha Companhia de Teatro tem muitos acordos com Escolas, sobretudo a níveis pré-universitários.

Costumo criar o texto colectivamente, em regime de brainstorming, potenciando que cada elemento dos elencos performativo ou técnico possa contribuir com algo de seu para a criação do espectáculo a construir. Este processo faz sempre com que cada um dos integrantes entenda o espectáculo como um objecto seu.

Há alguns anos, quando andava por aí aquela moda televisiva dos vampiros, do Twilight, e dos zombies, lancei a pergunta para um dos elencos, numa reunião de texto: “O que é que fascina tanto a vossa geração com esta história dos lobisomens, dos vampiros e dos mortos-vivos?”

A resposta surgiu rápida: “É aquela coisa da imortalidade”

Fiquei atónito. Acho que, por vezes, importa percebermos as motivações dos jovens.

Quanto a usar a saudade ou outro qualquer elemento, acho isso irrelevante, acho, isso sim, importante que se escreva para estas gerações. Ou, melhor; que se ponha esta geração a escrever para ela mesma. Talvez todos ganhemos com isso.

10-) Em sua opinião qual é a real função da poesia em nossa atualidade?

Não sei, na verdade. Nem me preocupa sabê-lo. Deixo isso para aqueles académicos que gastam o seu tempo a definir coisas sobre o acto criativo sem criarem nada que não seja a especulação sobre esse mesmo acto criativo.

Não sei que função tem a minha poesia. Mas sei a função que eu quero que tenha no momento em que a escrevo: quero que sirva como um meio de comunicação entre o meu pensamento e os meus concidadãos.

Penso neles quando escrevo. Frequentemente sinto-me um deles a “ler-me”. Porque, antes de ser escritor sou um leitor.

Isto não significa que escreva em função do gosto predominante. Não! Pode até coincidir mas essa não é a minha preocupação. Mas escrevo com o objectivo de ser lido por essa gente, a começar pelo meu microcosmos que é o meu bairro, pela senhora que me serve todos os dias um café expresso pela manhã e onde gasto (ou onde invisto) os meus 15 a 20 minutos diários de cheap talk enquanto espero o autocarro, até ao Martim, professor de liceu, literato, boémio e amigo do peito, penso nos meus filhos, penso na mulher que amo. Penso em toda essa gente e em muita mais que nem imagino algum dia vir a conhecer. Penso nessa gente e imagino-os a lerem-me a deliciarem-se ou a fazerem cara feia…

11-) “Carlos Clara Gomes”?  Poderia conter  a classificação de um intelectual hibrido? Ou dialético, por divagar por antagônicos campos do saber?

Gosto do “híbrido”. Não gosto de me auto-classificar. Isso é-me muito redutor. Compartimenta-me e constrange-me. Sufoca-me.

Aceito o “híbrido” porque ao híbrido está associada a palavra mestiçagem que me é imensamente querida.

A outra designação – dialética – não é de desprezar pois tive (quase contraditoriamente) uma adolescência simultaneamente missionária (católica) e de inspiração marxista (no mesmo seminário dos missionários com quem convivi diariamente durante quase três anos apesar de só o ter frequentado durante quinze dias). Nota que a minha adolescência foi maioritariamente vivida durante o fascismo português em que a Igreja Católica fazia uma castração intelectual enorme. Para mim, aquela gente – os Missionários Combonianos – quer pela atitude social quer pelo facto de me darem secretamente a ler obras proibidas em Portugal de que destaco O Cavaleiro da Esperança ou os Subterrâneos da Liberdade, do Jorge Amado, aquela gente – dizia eu – fazia uma enorme diferença não só em relação à Igreja mas em relação a todas as instituições existentes nessa época.

Mas não acho que haja campos antagónicos no Saber. Acho que todos se encaixam e que não existem fronteiras entre eles. Aliás: acho que sou um polímata pois já fiz inúmeras coisas diferentes mas não antagónicas, que a minha formação marxista – mais tarde reforçada pelo meu recrutamento para a Juventude Comunista (se calhar motivado pelo Jorge Amado e a sua literatura subversiva…) – me ensinou a fazer: Ser útil ao meu semelhante. Algo como Lucien Goldmann refere no seu livro “Le Dieux Caché”: Uma espécie de Cristianismo sem Cristo.

Fiz teatro, fiz música, fundei uma rádio, fundei um centro de arqueologia, viajei nos camiões do Movimento das Forças Armadas depois da Revolução para ensinar velhos a ler nas aldeias mais remotas de Portugal, fiz recolhas de gravações de repentistas e violeiros no Nordeste do Brasil, gravei poetas analfabetos em Moçambique, pratiquei esgrima e rugby, até fiz aeromodelismo… E tudo isso foi feito com espírito de missão, em nome dum mundo melhor, do tal Homem Novo. Que algum dia nascerá, estou certo.

12-) Você é um sonhador? Podemos ainda pensar em algum romantismo, contendo uma significação de um “amor”, que contenha um sentimento verdadeiro, ao invés de  ficarmos sonhando com um retorno da pessoa amada ao qual só existe em nossas mentes, sem assim cair no nefasto caminho do “ficar’, só por “ficar”, contendo assim uma ultra valorização do sexo sem limites?

Sim sou um sonhador. Apesar de vivermos sob a égide do pragmatismo, têm sido os sonhadores que fizeram a diferença sempre. E os preguiçosos, que tiveram o trabalho de inventar coisas para poderem preguiçar mais à vontade.

Como disse na minha resposta anterior, a minha formação católica marcou-me bastante. Já fui crente, depois fui ateu, hoje considero-me agnóstico. Mas há alicerces do meu pensamento que ficaram em mim e me acompanharam sempre desde o contágio com os Combonianos. E com os velhos presos políticos libertados com a Revolução, meus camaradas do PC. Havia um entre eles, ferroviário aposentado (alguns dos jovens mais malandrotes, nos quais eu me incluía, referíamo-nos secreta e carinhosamente a ele como o Estaline dos Comboios) que me contava histórias da clandestinidade enquanto me ensinava a jogar xadrez. Durante muitas dessas partidas de xadrez também falávamos da Batalha de Guararapes, de António Conselheiro, de Lampião combatendo a coluna Prestes, de Olga Benário sendo entregue por Getúlio Vargas a Hitler. Ou falávamos da canção política. Confessou-me que a poesia de Paul Simon era muito mais bela e interventiva que a de Bob Dylan, Dylan esse que o Estaline dos Comboios considerava “um franco-atirador dando uma de liberal”.

Um dia, o camarada Estaline dos Comboios não apareceu. Tinha tido um acidente vascular cerebral a caminho do Centro de Trabalho do PCP e morreu de imediato. A ambulância veio e levou-o para o Hospital, já sem vida.

Coube-me a cruel tarefa de levar a triste notícia à viúva.

Pois, estas duas fortes matrizes, a cristã e a marxista, fizeram os traços formativos do meu edifício de pensamento. Um desses traços formativos é o amor ao próximo. Não concebo uma qualquer comunidade em que tal não possa existir.

Tenho e tive os meus amores privados, alguns correspondidos em igual grau, outros nem tanto. Em todos eles fui muito feliz. Porque amei sem esperar o retorno.

13-)  Nessa passagem:”aqui construímos nosso mundo, mas lá fora inventamos ser pássaros” (página 51), ainda podemos contar com sonhos de uma ética de respeito pelos sentimentos verdadeiros, ou podemos decretar uma existencialismo nefasto de afetividade pelo próximo, seriamos pássaros presos nas gaiolas do egoísmo da modernidade?

Quanto a isso do sexo sem limites que perguntavas na questão anterior a esta, aproveito para te responder nesta: há sobrevalorização, sim. Há mesmo a banalização através da cultura televisiva que promove esse tipo de baixeza ética, perigosamente fomentando a promiscuidade – e não tenho nenhuma reserva mental do ponto de vista moralista para dizer isto – mas sobretudo fazendo crer que “esse” é o caminho certo: a banalização como o fim em si mesmo. Há claros objectivos de formatação social e política na promoção de programas televisivos como esses. Hoje é frequente um adolescente ser vítima de bulling na escola apenas porque gosta de ler. Ou porque toca violino. Ou porque ainda é virgem apenas porque quer deixar de o ser com quem ele ou ela consideram ser “a tal pessoa”.

É certo que a liberdade sexual pela qual se pugnou no Maio de 68 só está a chegar agora.

Por um lado, ainda bem que os jovens hoje têm uma outra postura relativamente ao sexo. Lembro-me que ninguém nos ensinava nada quando éramos jovens e que qualquer conversa sobre isso era um tema tabu. Por outro lado, lamento que a sua sobrevalorização favoreça a cegueira relativamente a outras formas de ligação afectiva que não comportem necessariamente a questão sexual.

Mas creio que o ponto de equilíbrio será encontrado. Sem castrações nem impedimentos. Mas também não creio que seja a poesia que vai resolver isso.

14) Diante da crise de valores que estamos vivenciando, com a chegada por exemplo de Donald Trump ao poder, ou as medidas conservadoras tomadas por Michel Temer no Brasil, Guerra Civil na Síria, o terror do Terrorismo do Estado Islâmico, o endurecimento do governo Putin, qual seria o papel do escritor hoje perante o turbilhão de intolerâncias que estamos testemunhando?

Acho que as esquerdas têm que repensar as suas estratégias de passar as mensagens. Sendo que esse “passar mensagem” não passa por operações de imagem – mera cosmética – que muita gente de direita (ou hoje posicionada à direita) defendia.

Acho que as esquerdas têm – em nome dos povos que defendem – que criar plataformas que permitam que seja travado o sofrimento desses mesmos povos.

Em Portugal estamos vivendo neste momento, há já um ano, uma experiência de governação sustentada por 5 partidos de esquerda – sem partilha de poder, note-se – mas que tem feito algumas melhorias na situação social do país. É evidente que depois de termos tido quer o governo Passos Coelho, quer o presidente Cavaco Silva, qualquer governo ou presidente se arriscam a ser bons pois pior do que aquilo não podia haver. Tínhamos batido mesmo no fundo.

No entanto, as esquerdas portuguesas tiveram a maturidade de, não cedendo os seus princípios, negociar situações parlamentares em nome da defesa do próprio regime democrático e em nome do fim ao estrangulamento do povo português.

Quanto ao apogeu das situações que referes, fixo-me em Trump e em Temer.

Trump sobe ao poder porque Hillary sobrestimou os mass media. Correu-lhe mal. Hillary foi responsável pelo assassinato de muita gente durante os mandatos de Obama.

A boa notícia nas eleições dos EUA é que Hillary perdeu. A má notícia é que Trump ganhou.

Por outro lado, os votantes dos EUA, pelos vistos preferiram um troglodita a representá-los. Mas a esse propósito, lembro-me dum slogan de campanha de Malouf que vi em S. Paulo: “Eu roubo mas faço!” Que mais palavras queres para explicar o fenómeno Trump?

Quanto a Temer, resumo isto em breves palavras: Toda a História do Brasil tem sido construída por golpes sobre golpes. Com efeito, Pedro solta o grito do Ipiranga num gesto de golpe contra a Coroa Portuguesa. Bendito golpe, digo eu!

Tens depois inúmeros golpes: A própria Lei Áurea que liberta os escravos é assinada pela princesa Isabel aproveitando a ausência do seu pai na viagem ao Extremo Oriente. Bendito golpe, esse, digo eu mais uma vez! E fico-me por aqui quanto à aprovação dos golpes.

Quando, finalmente, o Brasil consegue ter situações em que não há golpe – as eleições de Lula e de Dilma – é fomentado mais um outro golpe (com o alto patrocínio da Imperatriz do Brasil: Sua Majestade a Tv Globo. Observo que, por exemplo, Collor foi eleito porque a Globo assim o quis. Collor foi deposto porque a Globo assim o quis).

Qual é o papel do escritor nestes momentos? É o papel que qualquer cidadão deve ter: Denunciar, combater, lutar, lutar sempre. Na sua escrita ou fora dela. Na sua escrita e fora dela.

Uma das coisas que sinceramente lamento na obra de Fernando Pessoa é não ter escrito uma linha denunciando o fascismo. Lamento, apenas. Mas admiro-o imenso, obviamente.

Felizmente sempre tem havido escritores que têm sabido exercer a cidadania. E infelizmente sempre tem havido escritores apaniguados esperando esmolinhas que caiam da mesa farta do poder.

15-) A saudade e as distâncias podem ser consideradas armas, para o “indivíduo” conhecer a si próprio, e o mundo que o cerca?

Não direi “armas” mas talvez “ferramentas”.

Tudo pode servir para nos conhecermos a nós mesmos. Tudo, sem excepção. Obviamente, conhecermos o mundo que nos cerca leva-nos também a conhecermo-nos a nós mesmos pois nós fazemos parte daquele mundo que nos rodeia.

16) Para encerrar, qual parte do seu mais recente livro toca mais o coração do “homem” Carlos Clara Gomes?

Creio que me toca muito, não posso negá-lo, o livro como um todo, como uma unidade, uma história, um sentimento. Toca-me ver os poemas interpretados por outrem, serem lidos por outrem, com outra cor diferente da cor que eu lhe daria. Ver isso, assistir a isso é o equivalente a estar a percepcionar uma obra que já não é minha, que andou vivendo de determinada forma na minha cabeça e que, subitamente, a cada respiração, a cada esgar, a cada sorriso, a cada inflexão de voz, se tornou numa obra de outra qualquer entidade, algo sincrético. Esse parto, quando o livro deixa de ser meu, é como quando me despeço dum filho para ele ou ela irem fazer vida em outra cidade. Nesse momento sei que não voltará mais para mim. Mas continua sendo meu de alguma maneira.

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